
Em entrevista à Revista dos Bancários, o professor da Universidade de São Paulo (USP) e último coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, critica a descontinuidade pelo governo Federal do trabalho de resgate da memória, na busca por Verdade e Justiça, relativa ao período da Ditadura Militar no Brasil. Confira:
A Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012, representou um grande avanço no debate sobre Memória, Verdade e Justiça no Brasil. Quais foram as condições sociais e políticas que permitiram a instalação da CNV?
A Comissão Nacional da Verdade veio com um atraso, porque com o Regime Militar tendo sido encerrado em 1985, e a nova ordem constitucional democrática instaurada em 1988, com uma nova Constituição, deveria haver uma Comissão Nacional da Verdade muito antes, como se deu em países como África do Sul e Argentina. No Brasil foi muito demorado. Isso inclusive trouxe dificuldades para averiguação, porque muita gente já havia falecido, certamente muitos documentos importantes desapareceram. As razões para instalação foram a pressão dos familiares, governos de esquerda mais sensíveis a esse tema e, por outro lado, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso da Guerrilha do Araguaia, que inferiu na sua sentença a indicação de que fosse constituída uma Comissão da Verdade no Brasil.
Em 31 de março de 2019, o golpe completa 55 anos e o presidente da República estimula a celebração da data. Entre as recomendações da CNV está a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe…
Ficou evidente no Brasil, no período de funcionamento da CNV, o absoluto repúdio da sociedade brasileira às gravíssimas violações aos direitos humanos. Portanto, fazer daquele período tão ruim da história brasileira motivo de celebração é um enorme retrocesso. As próprias forças armadas estão cautelosas, porque sabem do sentimento da população. Mesmo a imensa maioria dos eleitores do atual presidente, votou nele por causa do descontentamento com a política brasileira, a corrupção, o desemprego, não porque são favoráveis à Ditadura Militar. É um retrocesso que deve ser severamente condenado pelas forças democráticas.
Uma das principais recomendações da CNV, a criação de um Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, atendida pelo governo Dilma com a criação da Lei 12.847, funcionou plenamente até 2018. Mas, até o momento, não foi dada posse aos membros do Comitê de Prevenção e Combate à Tortura para gestão 2019-2021, assim como os peritos não foram nomeados pelo Presidente. Como o senhor avalia essa situação?
O pior é que a imprensa traz a informação de que o número de casos de tortura no Brasil aumentou muito no sistema prisional. A recomendação da CNV foi justamente no sentido de reforçar uma política pública que já vinha sendo implementada no governo Dilma Rousseff. Lamentavelmente foi abruptamente cortada no atual governo.
O documento da CNV relata 434 casos de mortos e desaparecidos políticos no período. Indígenas, trabalhadores rurais e urbanos, não foram contemplados pela lista oficial. O Brasil ainda falha na reparação de violações e de crimes da Ditadura Militar?
Sem dúvidas. A própria CNV em seu relatório conclui que esse número não é absoluto. Exatamente porque as linhas de investigação que nós desenvolvemos a partir do pouco que se tinha, sobre o extermínio dos povos indígenas e o combate aos camponeses, merecem uma continuidade para que se tenha dados mais precisos. Portanto, o que a Comissão fez foi ser muito rigorosa e esses 434 casos são absolutamente comprovados e se conhece claramente as pessoas. Nós temos indicações de outros casos, que por falta de tempo ou de elementos não foram aprofundados com o mesmo rigor.
Esta é a primeira vez que os militares chegam ao poder por meio do voto direto desde 1946. Quais são os impactos da presença da cúpula militar para as políticas de reparação, justiça e verdade no País?
Esse assunto será deixado de lado definitivamente pelo governo. A não ser que haja uma pressão da sociedade civil, não vejo no perfil do governo atual a menor boa vontade para dar continuidade a esse processo de resgate da memória em busca da verdade e da justiça. Não acho com isso que os militares que estão ocupando cargos no poder executivo desejem a volta da ditadura. Mas, por outro lado, também não vejo qualquer indicação deles no sentido de reconciliação tendo em vista o passado. Enquanto permanecer o silêncio dos militares com relação ao que houve no período da Ditadura, a sociedade legitimamente ficará insegura com relação ao papel que eles podem desempenhar na vida política brasileira.
As políticas relacionadas aos direitos humanos, como a dignificação do sistema prisional e do tratamento dado aos presos, recomendada pela CNV, estão secundarizadas com o Pacote Anticrime do Ministro Moro?
Sem dúvida, mais até do que pelas medidas individualmente, porque me parece que está prevalecendo neste pacote uma visão de que o trato do problema da Segurança Pública virá apenas com medidas fortemente repressivas, quando na verdade deveriam envolver um conjunto de medidas sociais.
Como a sociedade civil pode garantir o fortalecimento da democracia e a efetivação das recomendações da CNV?
Com mobilização. Eu tenho viajado pelo Brasil e é muito grande o número de estudiosos que estão tratando sobre esse tema. A força está na mobilização da sociedade. Se a sociedade não se mobilizar, o tema cairá no esquecimento. A criação da comissão Arns é muito positiva, pois as grandes personalidades que a compõem têm um papel de militância muito ativo na promoção dos direitos humanos. Eu torço para que iniciativas como essa se multipliquem pelo Brasil.