O Ocupe Estelita é um movimento de direitos urbanos que abriga ativistas pernambucanos congregados na luta pelo direito à cidade. Com suas primeiras discussões datadas de 2012, trata-se de um movimento de mobilização recente. Contudo, a demanda pela gestão democrática das cidades, assim como os obstáculos à sua realização, remontam às últimas três décadas.
O reordenamento urbano foi uma das demandas mais presentes nos movimentos sociais dos anos 80. Pleiteavam minimizar os efeitos do crescimento urbano desordenado que, entre 1940 e 1960, deixou de ser um país de concentração populacional no meio rural para ter 80% de sua população nas cidades. O Movimento Nacional pela Reforma Urbana, fundado em 1985, teve papel decisivo nos debates Constituintes, ao condenar “a exclusão da maior parte dos habitantes da cidade determinada pela lógica da segregação espacial; pela cidade mercadoria; pela mercantilização do solo urbano e da valorização imobiliária; pela apropriação privada dos investimentos públicos em moradia…”.
Em seguida, a luta voltou-se para a regulamentação da “política urbana”, conquistada e sedimentada nos artigos 182 e 183 da Constituição, que assegura a gestão democrática das cidades e o uso do solo urbano com finalidades sociais. Após mais de uma década de tramitação no Congresso Nacional, o Estatuto da Cidade foi aprovado em 2001, levando os ativistas à busca por sua difusão, incorporação nos Planos Diretores Municipais e implementação na prática.
O “movimento direitos urbanos” surge em 2012, momento em que as normas estão consolidadas, mas a realidade teima em desafiá-las e ignorá-las. Construções são feitas ao arrepio da lei e mantidas pela “teoria do fato consumado”. Construtoras têm investido recursos na edificação rápida e têm se utilizado de instrumentos processuais para assegurar o decurso do tempo necessário à finalização do projeto e sua consequente manutenção.
Este é precisamente do caso do Projeto Novo Recife, que pretende erguer 12 torres de no mínimo 40 andares em uma área próxima a monumentos históricos da cidade. O empreendimento viola as disposições do Estatuto da Cidade ao desconsiderar os impactos sociais e ambientais das edificações.
O objetivo primordial do Ocupe Estelita é promover a adequação do Projeto às normas vigentes, por meio da realização de estudos de impacto ambiental e de vizinhança, assim como de promoção de diálogo com a sociedade. Para tanto, o movimento tem se valido de um arsenal inovador e audacioso de estratégias de mobilização que buscam demonstrar o quanto o projeto prejudica a cidade e contraria as normas pertinentes. Dentre essas estratégias, destacam-se:
- ocupação pacífica e permanente;
- identidade visual própria;
- promoção de atividades culturais e educacionais no local;
- organização de shows com artistas famosos, reunindo mais de 10 mil pessoas;
- constante cobertura das atividades nas redes sociais e produção de textos e vídeos informativos para veículos de mídia independente;
- atuação jurídica para obter resposta efetiva órgãos do Sistema de Justiça;
- estudo, elaboração e apresentação de propostas alternativas de construção ambientalmente e socialmente adequadas, mantendo-se a área construídas pelas construtoras.
Não obstante essa combinação de mobilização e atuação técnica, o interesse econômico envolvido no Projeto, com custo estimado em R$ 800 milhões, tem frustrado as pretensões do movimento. A aliança do poderio econômico com três principais fatores estruturais, violência dos órgãos de segurança, concentração da mídia e a financiamento privado de campanhas eleitorais, cria dificuldades quase intransponíveis não apenas ao Ocupe Estelita, mas a outros movimentos sociais progressistas brasileiros, como o MST, MTST, MPL, etc.
A violência institucional, seja praticada diretamente pelas forças de segurança ou por sua atuação omissa, coloca os ativistas em risco e age como inibidor de novas adesões. O Ocupe Estelita permaneceu no local entre 21 de maio, quando se iniciaram as demolições dos galpões existentes na área, e 17 de junho, quando foram surpreendidos ainda de madrugada pela a presença ostensiva da cavalaria policial. Os policiais expulsaram os ativistas do local de forma violenta, mesmo sem terem oferecido qualquer resistência. Após a expulsão, o Consórcio ergueu muro no local para impedir a entrada. Os ativistas resolutos formaram acampamento no viaduto em frente, mantendo a mobilização e as atividades culturais e educacionais, assim como aumentaram a mobilização pela internet (uma carta endereçada ao Prefeito do Recife já atingiu mais de 15 mil assinaturas).
A atuação enérgica, com uso desmedido da força, é comum nas ações de repressão aos movimentos sociais brasileiros, basta lembrar casos emblemáticos como o Massacre de Eldorados dos Carajás e a recente desocupação da “Favela da Telerj” e rememorando-os notar o quanto o uso excessivo da força é constante em manifestações, ocupações e outras ações promovidas pelos mais diversos movimentos sociais brasileiros. Essa realidade faz urgir a necessidade de uma reforma do sistema de segurança pública brasileiro, tornando-o mais permeável aos direitos humanos e ao respeito às expressões democráticas.
Já a grande mídia brasileira segue sob o controle de poucos grupos de grande poder econômico, cujos interesses muitas vezes coincidem com os daqueles responsáveis por empreendimentos urbanos de grande impacto. Nesses casos, as coberturas jornalísticas têm se mostrado esparsas e parciais. No caso do Ocupe Estelita, a ocupação pacífica do cais, os eventos artísticos que mobilizaram milhares de pessoas e a violência policial praticada em 17 de junho praticamente não ressoaram na cobertura da imprensa local. Ao contrário, as poucas matérias veiculadas na televisão focaram noticiar as quantidades ínfimas de maconha encontradas no local e presença de “armas brancas” (martelo e enxadas usados para montar as barracas e capinar), numa clara tentativa de criminalizar o movimento.
Por fim, há a relação umbilical entre grandes empreendimentos econômicos e as doações para campanhas eleitorais, que abrem caminho para a influência do poder econômico nas decisões públicas.
Urge um debate profundo sobre reforma política no Brasil e financiamento de campanhas. A proibição de doações de empresas privadas para campanhas políticas está em discussão no Supremo Tribunal Federal – ADI nº 4650/DF – e é um dos pontos de reflexão da Plataforma dos Movimentos Socais pela Reforma Política. Atualmente, o pleito está suspenso por pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes e sem previsão de retorno a pauta do STF. No atual sistema eleitoral, os candidatos necessitam de campanhas caríssimas para terem a chance de eleger-se, com isso se tornam dependentes de grandes doadores, que utilizam os recursos financeiros como poder de pressão sobre esses candidatos quando eleitos.
Conclui-se, portanto, que não há saída possível para as demandas do movimento de direitos urbanos, ou de grande parte dos movimentos sociais brasileiros, que não seja o debate sobre reformas estruturais. Estamos diante de um circulo vicioso perverso que impede o ressoar de pleitos legítimos dos movimentos, tornando cada batalha uma luta de Davi contra Golias.