Em 2014 a cidade do Recife está expondo de maneira tão virtuosa quanto inesperada o escândalo da separação entre desenvolvimento capitalista e democracia. O front que explicita essa dissociação – marca da história brasileira em geral e a da capital pernambucana em particular –, é a destinação de uma área de 10 hectares (o Cais José Estelita, na bacia do Pina, no centro da cidade), para ser usado em um empreendimento imobiliário orçado em R$ 800 milhões e que prevê a construção de 12 torres com até 40 andares. O Projeto Novo Recife, tocado pelo Consórcio Novo Recife (formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, G.L. Empreendimentos e Ara Empreendimentos), é objeto de cinco ações judiciais que questionam sua legalidade. Mas o debate no momento já está para além da questão urbana e da saúde futura da cidade. Esse front expôs o círculo vicioso da velha política em Pernambuco: o uso da violência institucionalizada na defesa de interesses privados e de fins políticos particularistas, sem receio de se identificar com formas autocráticas de autoprivilégio em detrimento do interesse público.
O mais substantivo sinal de que a resistência a esse processo está pendendo para o lado da democracia foi o recuo da Prefeitura da Cidade do Recife, que suspendeu o alvará de demolição dos galpões do cais. Isso aconteceu durante reunião convocada pelo prefeito Geraldo Júlio com reitores das principais universidades do Estado, com o Conselhor de Arquitertura e Urbanismo, Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho Regional de Engenharia e Arquiterura, e com integrantes do Movimento #OcupeEstelita e do grupo Direitos Urbanos (DU). Embora a suspensão do alvará seja uma vitória parcial, o empenho dos movimentos e das diversas instituições contrárias ao Projeto Novo Recife é a anulação do processo administrativo que o aprovou. A base jurídica é o Artigo 196 da Lei de Edificações (Lei Municipal Nº. 16.292), que estabelece que o “projeto poderá ser cancelado, ainda, a juízo da Comissão de Controle Urbanístico – CCU, quando for constatado engano na sua aprovação, por parte do Município. Parágrafo único. Ocorrida à hipótese prevista neste artigo, correrá por conta do Município a responsabilidade pelo cancelamento do projeto, na forma da legislação pertinente”.
A história recente das intervenções urbanísticas na cidade, com perniciosos impactos sobre a saúde urbanística, entretanto, justifica a necessidade de manutenção da ocupação do espaço, que acontece desde o último dia 21. No último domingo (1 de junho) aconteceu a mais expressiva manifestação da sociedade contra o Novo Recife: uma jornada de dia inteiro com atividades culturais, aulas, shows, oficinas, debates sobre urbanismo, feiras de livros. Cerca de sete mil pessoas passaram pelo local – jovens, idosos, famílias indo conhecer um território desconhecido por ter passado anos todo murado, e aberto a possibilidades mais democráticas de uso e ocupação. O Movimento #OcupeEstelita não possui um centro de representação que possa ser identificado a uma entidade, partido ou coletivo – embora o Movimento Direitos Urbanos (DU) seja um dos mais bem articulados e encabece parte do diálogo com as esferas institucionais.Naquele dia 21 de junho, a construtora Moura Dubeux deu início, à noite, à demolição das estruturas que ainda existem no Cais. O trabalho foi flagrado pelo integrante do Movimento Direitos Urbanos, Sergio Urt, que depois de exigir a apresentação do alvará de demolição foi espancado pelos seguranças. Sérgio fez uma convocação naquela mesma noite que mobilizou mais de 200 pessoas ao longo da madrugada e que, juntas, conseguiram interromper a demolição. Desde então a área interna do terreno se transformou num enorme acampamento e na experiência política mais virtuosa da cidade para pensar sobre ela mesma nos últimos tempos.
A decisão de impedir, com a presença física, o andamento ilegal da demolição, assim como as assembleias diárias, a programação cultural, as aulas públicas, a divulgação, por meios alternativos, de todo o debate em torno do uso racional e humanizado do espaço público da cidade (já que o assunto não é tratado por nenhum meio de comunicação comercial em Pernambuco) têm colocado em evidência uma forma de se fazer política diametralmente oposta à que se consolidou em Pernambuco nos últimos anos. Com o recuo da prefeitura, o Movimento #OcupeEstelita ganha mais força para negociar um replanejamento para a área e, em especial, o cancelamento, haja vistas a série de irregularidades.
Ligações perigosas e ilegalidade – O recurso ao termo “velha política” vem sendo utilizado pelo candidato à Presidência pelo PSB, o ex-governador Eduardo Campos, para se referir a praticamente todos os seus adversários como artífices do toma lá da cá, do interesse privatista, da lógica do privilégio e do patrimonialismo. Entretanto, o Projeto Novo Recife é um dos legados do neo-desenvolvimentismo implantado no Estado Nordestino pelo então governador, e que se caracteriza especialmente pela falta de diálogo com a sociedade, por intenso processo de cooptação que exterminou a oposição legislativa no Estado, pela implementação de políticas públicas de forte impacto ambiental e social sem a necessária consulta às partes mais interessadas. Um modus operandi que torna desnecessária a política e redefine a própria democracia, que passa a ser restrita aos membros das classes que se qualificam, econômica, social e politicamente para o exercício da dominação.
Os questionamentos judiciais, tanto na Justiça Estadual quanto na esfera Federal, à ilegalidade do Projeto Novo Recife podem deixar isso mais claro. Tais ações questionam a lisura do leilão do terreno (motivo de ação judicial movida pelo Ministério Público Federal); a ausência de Plano Urbanístico exigido pela Lei Municipal 16.550; o parcelamento do terreno (Lei Federal nº 6.766/76 e Lei Municipal nº. 16.286/97); a ausência de Estudo de Impacto Ambiental (contrariando o disposto no art. 225, § 1º, inciso IV, art. 16 da Lei Municipal nº. 16.176/96 e arts. 10 e seguintes da Lei Municipal nº. 16.243/96, Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico da Cidade do Recife) e de Estudo de Impacto de Vizinhança (exigência prevista no Estatuto das Cidades na Lei nº. 10.257/2001, art. 188); além da ausência das licenças do DNIT, Iphan e ANTT. Por ser uma área sob questionamento judicial, não se pode construir nada até que todos os processos sejam concluídos.
Apesar de todas essas ilegalidades, o projeto foi aprovado no dia 28 de dezembro de 2012 – último dia útil da gestão do prefeito João da Costa (PT) –, numa reunião noturna do Conselho de Desenvolvimento Urbano. A validade dessa deliberação também está sendo questionada na Justiça. Foi aprovada depois de um leilão cuja validade também é alvo de ação judicial. A aprovação significa que a prefeitura concorda com o traçado arquitetônico. Contrariando a lei, aconteceu antes do parcelamento dos lotes (o parcelamento é o instrumento através do qual se determina como uma grande área deve se incorporar ao restante da cidade, afastando a idéia de “gueto” ou “feudo”).
Naquele mesmo ano, o então prefeito João da Costa foi homenageado com o Troféu ADEMI, concedido pela Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Pernambuco (Ademi-PE). A adversidade entre as gestões do PT e do PSB não se mantém quando o assunto é o Projeto Novo Recife. Para minimizar os efeitos da obra, a gestão seguinte à de João da Costa, do prefeito Geraldo Júlio (PSB) acordou ações mitigadoras.
A lista de relações curiosas e perigosas continua. Depois da ocupação no dia 21 de junho, as empreiteiras deram entrada com uma ação de Interdito Proibitório junto à 19ª Vara Cível do Recife. O objetivo é impedir a ameaça de posse por parte do consórcio. O escritório contratado para ajuizar a ação tem como principal sócio o atual procurador-geral do Estado e primo e indicado pelo ex-governador Eduardo Campos, Thiago Norões.
O mesmo escritório é responsável por responder aos contratos de terceirização relacionados à PPP que deveria ter construído o presídio de Itaquitinga. O escritório do primo do então governador foi contrato pela empresa que iria erguer a unidade de detenção.
No que se refere à ocupação, o Tribunal de Justiça de Pernambuco já proferiu decisão de reintegração de posse no caso do Cais José Estelita. O fato realça as interessantes e perigosas ligações que podem ser verificadas entre a iniciativa privada e parte do judiciário estadual. O processo estava na Justiça de 1º grau e o juiz proferiu um despacho de mero expediente, ou seja, solicitou um posicionamento do Ministério Público. O despacho de mero expediente não está sujeito a recurso. Mesmo assim, os advogados do Consórcio Novo Recife recorreram, e o Tribunal julgou favorável esse pedido. Na prática, o TJPE em segunda instância anulou uma decisão de primeira instância que ainda não havia sido tomada, no que se configura supressão de instância e por decorrência faz com que a decisão seja nula, por contradizer a independência do Poder Judiciário e o Estado Democrático de Direito.
O argumento do TJPE é que o posicionamento do Ministério Público Estadual é desnecessário no caso – observe que essa conclusão/argumento foi tomada sem que se ouvisse o MPPE, a quem cabe afirmar a existência ou não de interesse público. O desembargador que emitiu o termo de reintegração de posse ao Consórcio Novo Recife, Márcio Fernando de Aguiar Silva, justificou que o MPPE não precisaria ser ouvido, uma vez que o imóvel é urbano e não rural. O magistrado já é velho conhecido da Corregedoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Em 2012, ele foi denunciado pelo promotor do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) André Rabelo e os advogados Jadson Espiúca Borges e José do Egito Negreiros Fernandes, por ter revogado, no dia 5 do mês de dezembro daquele ano a prisão de empresário que estava detido no Centro de Observação Criminológica e Triagem (Cotel), em Abreu e Lima, acusado de ter abusado sexualmente de suas duas filhas pequenas. O magistrado não poderia ter feito isso sem consultar o Ministério Público. O caso também foi relatado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na ocasião, o juiz estava lotado como titular da 4ª Vara de Sucessões e respondia por Fernando de Noronha porque o titular da Ilha, Humberto Vasconcelos, havia sido transferido para tirar férias do desembargador Luís Carlos Figueiredo, no Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Judicialização e visibilidade – Apesar dessa continuidade de intenções em relação ao Projeto Novo Recife, Geraldo Júlio – cuja candidatura recebeu a doação de R$ 1,35 milhão de empresas do consórcio –, até agora vem afirmando que toda a questão está judicializada, apesar da disputa jurídica ainda em curso.
Tem evitado o diálogo com o Ministério Público Estadual e com outras entidades interessadas em contribuir com um uso do espaço que não segregue o restante da cidade e em especial o histórico bairro de São José, um dos mais tradicionais e importantes de Recife. Recusou-se também a receber um abaixo-assinado com mais de 10 mil assinaturas de pessoas que discordam do processo e do Projeto Novo Recife. Depois de oito dias de intensa pressão popular convocou uma reunião para discutir o projeto, que aconteceu na manhã desta terça-feira (3 de junho).
Porém, não convidou os principais intermediários das reuniões de negociação realizadas até agora: o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual.
Afirma que as decisões e o projeto Novo Recife foram analisados em governos passados e por isso não pode fazer nada. O que os movimentos sociais cobram do prefeito agora é o uso das prerrogativas de seu cargo e a reabertura do debate sobre o uso do espaço e o cumprimento das exigências legais (Estatuto da Cidade, audiências públicas, planejamento urbanístico, parcelamento do solo, análises de impactos), poupando assim o judiciário de mais uma longa demanda. É interessante observar também que em seu despacho, o desembargador Márcio Fernando de Aguiar Silva afirmou que não considera os ocupantes integrantes de Movimentos Sociais.
Apesar do prefeito Geraldo Júlio procurar desassociar as ilegalidades de sua gestão, é interessante lembrar que uma das atribuições da administração municipal é conceder ou não autorização para novas construções e reformas na cidade. Cada uma dessas etapas acontece em processos administrativos que são deferidos ou não, independente das etapas anteriores. O parcelamento da área é uma dessas etapas e ainda não foi completada. Ainda assim, foi a atual administração que deferiu alvará de demolição – apesar do terreno estar sob júdice – e sem a autorização do Iphan. Da mesma forma, o alvará de construção, que o consórcio ainda não possui, é um assunto que deverá ser tratado pela atual gestão.
Até agora a administração tem procurado deslegitimar a ocupação, associando-a a alguma organização partidária que pretende prejudicar seu governo e por extensão a imagem dos candidatos à presidência (o ex-governador Eduardo Campos) e ao governo do Estado, o ex-secretário da administração estadual Paulo Câmara. O movimento, por seu lado, tem se configurado uma articulação da sociedade civil muito diversificada na qual se identifica uma minoria isolada de quadros partidários participando do movimento, mas que não têm se diferenciado de outros apoiadores. O que tem se mostrando evidente e também virtuoso é que nenhuma liderança de partido político guia o movimento – o que aliás pode se constatar em qualquer assembléia dos ocupantes.
Diversos intelectuais, estudantes, movimentos populares autônomos e suprapartidários, trabalhadores do comércio informal do Recife, artistas, membros de ONGs, professores, músicos e diferentes personalidades públicas têm declarado sua solidariedade com o movimento, produzindo reflexões, ministrando aulas públicas sobre assuntos relacionados à disputa, destinando tempo e esforços variados e que tem dotado a ocupação de um caráter festivo e político muito consistente. Aliás, cada vez mais artistas e figuras públicas têm manifestado apoio ao movimento, agregando força e repercussão em torno da sua pauta.
Parte da indignação que tem movido os manifestantes é formado pelo silêncio dos jornais locais sobre o assunto. Dependentes da verba publicitátria estadual, municipal e do mercado de construtoras, os jornais, Tvs e rádios não noticiam o que tem acontecido nesses útimos 9 dias. O caso do Grupo João Carlos Paes Mendonça (JCPM) é exemplar. O presidente do grupo – que inclui Rádio, TV e jornal impresso – também atua no segmento da construção civil e detém ações de shoppings da cidade. O mais recente empreendimento e também o mais luxuoso, destinado às Classes A e B, o Shopping Rio Mar, é localizado bem próximo ao Cais José Estelita, sendo vizinho do bairro do Coque (e construído em parceria com a G.L. empreendimentos, uma das construtoras do Consorcio Novo Recife). Toda a área é de interesse na reorganização forçada em andamento do espaço central da cidade.
Os manifestantes também se ressentem das distorções realizadas sobre as motivações e objetivos do movimento.
Essa situação só se alterou na última segunda-feira (02/06), quando os três principais jornais e os noticiários das Tvs locais passaram a publicar notícias – em todos os dias, praticamente, repórteres estiveram no local, mas seu trabalho não foi publicado/veiculado.
Reordenação do centro-sul – A emissão de termo de reintegração de posse deu um renovado gás à ocupação do último domingo (01/06). As cerca de sete mil pessoas fizeram da terceira edição do #OcupeEstelita algo muito especial. Sobretudo porque foi a primeira ocasião em que aconteceu intramuros. Contou com uma série de eventos culturais desde as 11 horas da manhã – aulas públicas, feira de livros, música, oficinas, debates sobre a política urbana e com programação também direcionada para crianças. Diversos artistas plásticos fizeram intervenções nas paredes dos armazéns, que já serviram ao depósito de grãos e açúcar, DJs se apresentaram e criadores de orquídeas fizeram oficinas de cultivo.
O ponto alto da programação foi o Som na Rural, projeto que leva música executada ao vivo e tem como palco um veículo off road todo iluminado. Apresentaram-se Karina Buhr (um show sensacional, visceral), Junio Barreto, Cannibal, Siba e Lia de Itamaracá.
Os mais de 100 mil metros quadrados do Cais foram totalmente tomados por velhos e jovens, famílias inteiras que não conheciam o espaço até agora cercado por muros. “Do lado de fora não dá para perceber a dimensão disso aqui”, afirmou a dona de casa Maria da Conceição Ferreira, que visitava com o neto a ocupação. Moradora do Coque – comunidade central e vizinha ao Cais que tem sérios poblemas de moradia e urbanização.
Na verdade, tanto as comunidades do Coque, Brasília Teimosa e sua bacia, os bairros de Santo Antônio, São José e Pina que formam o centro-sul da capital pernambucana, são os alvos de um projeto que vai além do que se pretende erguer no Cais José Estelita. O Novo Recife é resultado de uma articulação entre mercado e o neo-desenvolvimentismo de partidos com tradição à esquerda. Ele tem um forte parentesco com o que já aconteceu no século XIX na cidade, quando a elite que governava o estado achou por bem que Recife deveria se parecer mais com a Europa do que com a África ou com a Àsia – o que de fato parecíamos. E foi assim que o então centro foi todo demolido, o que afastou a população que morava naquilo que hoje chamamos Bairro do Recife, ou Recife Velho. Aquela população, majoritariamente formada por filhos de escravos, escravos de ganho, brancos e mestiços pobres formava uma mancha urbana cujo perfil e distribuição eram incompatíveis com as necessidades de expansão comercial (ruas mais largas para a passagem das mercadorias que iam e vinha do velho Porto do Recife, armazéns, sistema de escogamento sanitário, conexão entre as ilhas da cidade por pontes de tijolo e cimento). Essa necessidade de encaixe no sistema produtivo capitalista tinha uma estética bem identificável: o neo-classicismo europeu – particularmente o francês.
Hoje, o mesmo processo se “repete” com as cores de seu tempo. Há uma necessidade de dar um passo adiante no encadeamento produtivo internacional que permita uma inserção mínima da economia local e esse processo passa pela arrumação interna. Assim como na segunda metade do Século XIX, a modernização excludente foi guiada por forças conservadoras – na figura do governador Francisco do Rêgo Barros, o Conde da Boa Vista –, atualmente também são conservadoras as forças que apóiam o Projeto Novo Recife.
É por isso que o Movimento #OcupeEstelita ganhou a dimensão que ganhou no Estado. O movimento mostra que não foi a sociedade que abandonou o Cais. A permanência do Projeto Novo Recife como está é portador de um impacto ambiental que só se compara à capacidade simbólica de confirmar o caráter de uma sociedade cada vez mais excludente.