Guerra à Periferia

Fez
sol no primeiro dia de 2013. Dia bom para a molecada do Jardim Rosana
empinar pipa e jogar bola nas ruas da comunidade, localizada no Campo
Limpo, periferia sul de São Paulo. Os meninos só pararam de brincar
quando viram dois policiais militares se aproximando – quem mora na
periferia aprende a temer fardas e viaturas.

Os
PMs pararam perto de um grupo de quatro adolescentes e um dos
policiais deu o aviso: “A motinho preta está vindo aí matar todo
mundo”, disse, conforme o relato da comerciante Rita de Cássia de
Souza, 52 anos, mãe de Brunno Cassiano, 17, um dos quatro
adolescentes ameaçados.

Os
meninos ficaram assustados. Eles sabiam do que o policial estava
falando. Os assassinos das motocicletas eram fantasmas de carne e
osso que vinham assombrando com regularidade as periferias da Grande
São Paulo durante o segundo semestre de 2012, autores de chacinas
que destruíam famílias inteiras.

Dois
homens numa motocicleta, ambos com capacete, apareciam disparando
contra um grupo de pessoas. O mesmo roteiro, com os mesmos
personagens, foi repetido centenas de vezes, às vezes variando com a
presença de um carro escuro, recheado de matadores com toucas
ninjas.

Os
assassinos sem rosto ficaram conhecidos como “motoqueiros
fantasmas”  numa referência a um personagem demoníaco dos
quadrinhos da editora Marvel. Naquele ano, o motoqueiro com cabeça
em chamas chegava às telas na pele de Nicholas Cage, no segundo
filme do personagem, chamado Motoqueiro
Fantasma: O Espírito da Vingança.
 Pois
parecia que os grupos de extermínio que atacavam as periferias
estavam mesmo possuídos por um espírito da vingança, já que quase
sempre atacavam nas imediações de onde um policial militar fora
morto ou ferido.

Ainda
no calor da guerra, em novembro de 2012, o então delegado-geral de
polícia de São Paulo, Marcos Carneiro Lima, revelava que, antes das
chacinas, policiais militares haviam consultado antecedentes
criminais dos mortos. Outras evidências de que eram PMs os que
vestiam as toucas ninjas dos grupos de extermínio foram relacionadas
em um trabalho ainda inédito realizado por pesquisadores do Núcleo
de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), a
ser publicado em julho.

Vai
acontecer uma desgraça”

Nenhum
policial havia sido atacado na região do Jardim Rosana, quando os
PMs anunciaram que a motinho preta iria matar todo mundo, em 1o
 de
janeiro de 2013. Mas os moradores tinham motivo de sobra para temer
uma retaliação dos assassinos mascarados. Dois meses antes, em
novembro, um morador da favela havia gravado a morte do servente de
pedreiro Paulo Batista do Nascimento, 25 anos, assassinado numa das
ações que a polícia costuma registrar como “resistência seguida
de morte”. Segundo o Ministério Público Estadual, Paulo, 25 anos,
já estava rendido pelos policiais e implorou pela vida antes de ser
executado com cinco tiros. Após a divulgação das imagens pelo
Fantástico, da TV Globo, os cinco PMs envolvidos no crime foram
presos.

Nas
semanas seguintes, o medo passou a morar no Jardim Rosana.
Desconhecidos circulavam em carros escuros, de olho nos moradores.
Quando os policiais apareciam fardados, batiam nos jovens e gritavam
com as mães que reclamavam. “Faziam isso com todo mundo,
independente de errado ou certo”, lembra Rita de Cássia. Os jovens
pensaram até em atravessar carros na rua a partir das 22h, para
impedir o tráfego, mas não chegaram a colocar a ideia em prática.

Na
virada para 2013 as ameaças ficaram mais explícitas. Além do
recado da “motinho preta” dado aos meninos, policiais ordenaram
ao dono de um bar na Rua Reverendo Peixoto de Lima que fechasse
o estabelecimento antes das 21h, senão iria “acontecer uma
desgraça”. Sem outro ganha-pão, o comerciante recusou-se a seguir
o toque de recolher e o bar ainda estava aberto às 23h de 4 de
janeiro quando a desgraça aconteceu. Três carros pararam em frente
ao bar, despejando pelo menos 14 homens armados. Segundo os
moradores, eles gritaram “polícia” e atiraram em tudo o que
viram.

A
chacina do Jardim Rosana deixou sete mortos, entre eles o rapper
Laércio Grimas, 33 anos, o DJ Lah, popular entre a juventude da
periferia, além de três feridos. Uma das vítimas foi Brunno.
Segundo Rita de Cássia, seu filho conseguiu escapar da cena do crime
apenas com um tiro em uma das pernas e, para se esconder, pulou o
portão da casa de uma moradora. Assustada, a mulher chamou a
polícia, que levou Brunno.

“Meu
filho entrou na viatura baleado na perna e chegou no hospital morto
com seis tiros”, lembra Rita.

O
relato da mãe de Brunno revela o mundo virado pelo avesso da
violência na periferia, onde quem pula o portão de uma casa à
noite é a vítima e quem chega para matar é a polícia.

Salve
geral

A
chacina do Jardim Rosana foi o último ato de uma guerra entre a
polícia e o crime organizado que tomou conta dos bairros periféricos
da Grande São Paulo durante o segundo semestre de 2012. Uma guerra
em que os inocentes foram as maiores vítimas e as forças de
segurança do Estado, os principais matadores.

A
guerra começou com um “salve geral” (recado a todos os
integrantes) distribuído pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) –
facção criminosa, criada em 1993, que domina o sistema
penitenciário e controla boa parte do tráfico de drogas no Estado
de São Paulo. Pela ordem, os membros da facção que estivessem nas
ruas estavam convocados a matar “botas” (policiais militares). Os
bandidos agiam em nome do espírito da vingança: o PCC dizia que o
objetivo era vingar as mortes de seus integrantes ocorridas nas mãos
de policiais militares, que estariam agindo “na covardia”, ou
seja, praticando execuções.

Teve
início a maior ofensiva do PCC contra as forças de segurança desde
os ataques que fizeram São Paulo parar em maio de 2006. O número de
policiais militares assassinados disparou. Segundo dados publicados
no Diário Oficial, 88 PMs da ativa foram mortos no Estado de São
Paulo em 2012 (contando mortes em assaltos ou confrontos), contra 56
no ano anterior. Incluindo os da reserva, foram 106 no total.

Após
os ataques contra os policiais, veio a resposta dos grupos de
extermínio e dos policiais, que matou muito mais gente. Entre as
vítimas havia tanto criminosos como trabalhadores sem ficha na
polícia, aparentemente mortos apenas porque estavam na rua à noite.
Todos tinham algo em comum: moravam na periferia.

Por
que não tem chacina nos Jardins?

Em
muitas das ações, os matadores das motocicletas fantasmas e dos
carros escuros adotavam procedimentos que pareciam pensados para
dificultar a investigação dos crimes: enquanto um dos matadores
atirava, o outro recolhia as cápsulas deflagradas. Também chamava a
atenção das testemunhas a agilidade com que as viaturas da Polícia
Militar se aproximavam dos locais das matanças. Familiares das
vítimas contaram que, nesses casos, o “socorro” chegava minutos
após as mortes e levava para os hospitais baleados que aparentemente
já estavam mortos, no que parecia mais uma tentativa de atrapalhar a
perícia no local – apagando evidências que poderiam levar aos
matadores –do que de salvar vidas.

A
suspeita do envolvimento de PMs nos crimes contra a periferia foi
levantada pelo próprio delegado-geral da Polícia Civil, Marcos
Carneiro Lima, em um desabafo disparado quatro dias antes de deixar o
cargo, em 22 de novembro do ano da guerra. Numa entrevista coletiva,
Carneiro afirmou que antecedentes criminais de mortos na onda de
violência tinham sido consultados por PMs antes dos assassinatos,
numa clara indicação da participação policial nos homicídios.

“A
sociedade, ao receber a informação de que oito homicídios
aconteceram em um curto espaço de tempo, em um espaço geográfico
pequeno, é porque alguma coisa estranha está acontecendo”, disse,
na ocasião. “É importante ressaltar que a gente nunca teve
chacina nos Jardins. Por quê? Por que é tão fácil matar pobre na
periferia? Porque ainda existe uma grande parcela da sociedade que
acha que matar pobre na periferia é matar o marginal de amanhã”,
afirmou.

Olha
quem morre, veja você quem mata

Em
busca desse “algo estranho acontecendo”, a reportagem fez um
levantamento parcial, a partir de dados levantados pela Defensoria
Pública do Estado de São Paulo e do noticiário da época.

Nos
11 casos de ataques contra policiais militares registrados no
mapa (que incluem tanto execuções como possíveis latrocínios)
seguiram-se 38 homicídios praticados por desconhecidos, muitas vezes
de moto, ou mortes de suspeitos em supostos confrontos com a PM.

Em
todos os casos, a ação dos matadores ocorreu sempre numa área
próxima (até dez quilômetros) e num período de tempo
curto (na maioria dos casos, em até dois dias) em relação aos
ataques contra os policiais. O mapa também inclui a morte de um
sargento do Exército, morto ao tentar proteger um PM num tiroteio,
em Santos.

Sejam
quais forem os números usados para entender as baixas ocorridas em
2012, uma constatação não muda: nessa guerra, a ação da polícia
e dos grupos de extermínio deixou muito mais mortos que os ataques
dos criminosos.

Segundo
os dados publicados em Diário Oficial, enquanto 88 policiais
militares da ativa foram mortos no Estado em 2012, PMs fardados
mataram 547 pessoas em supostos confrontos (resistências seguidas de
morte) – o maior número desde 2004.

Porém,
a conta das vítimas de grupo de extermínios é bem maior. Um estudo
inédito feito pelas pesquisadoras Camila Caldeira Nunes Dias,
Ariadne Natal, Gorete Marques e Mariana Possas, do Núcleo de Estudos
da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) contabilizou 26
PMs mortos e um ferido nos ataques realizados pelo PCC contra agentes
do Estado na Grande São Paulo ao longo do segundo semestre de 2012
(excluindo confrontos e latrocínios).

No
mesmo período, as execuções praticadas apenas pelos grupos de
extermínio na região metropolitana, sem contar as “resistências
seguidas de morte” da PM, mataram 306 pessoas e feriram outras 235.
Os dados constam do estudo O
impacto das decisões políticas na área de segurança pública e
ação de grupos de extermínio: o caso da crise de 2012 em São
Paulo
,
que deve ser divulgado em julho, no encontro do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública.

A
análise das pesquisadoras também aponta que os grupos de extermínio
parecem ter agido para vingar a morte de policiais. “Do ponto de
vista da nossa análise, as dinâmicas sociais e políticas que
acompanhamos sugerem a estreita relação entre as execuções, os
grupos de extermínio e a participação de policiais nestes grupos”,
afirma Camila.

A
Rota na rua

Para
entender o que deu início à guerra de 2012, a pesquisa do NEV-USP
recuou três anos. “A crise de 2012 começa com a nomeação de
Antonio Ferreira Pinto como secretário de Segurança Pública, em
março de 2009”, afirma Camila, enquanto toma um cappuccino numa
lanchonete da Cidade Universitária, na zona oeste de São Paulo.
Sorridente e falante, a autora do livro PCC:
hegemonia nas prisões e monopólio da violência
 (Saraiva,
2013) é uma acadêmica que tem prazer em pesquisar e falar sobre
suas descobertas, ainda que seus objetos de estudo envolvam prisões,
violência e morte.

Ferreira
Pinto atuou como secretário da Segurança Pública durante três
anos, até perder o cargo, em novembro de 2012, em meio à guerra
contra a periferia. Assim que assumiu a pasta, decidiu colocar a Rota
(Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) na linha de frente das ações
de investigação e repressão ao PCC. Era uma decisão arriscada.
Desde 1970, quando foi criada para “ações de controle de
distúrbios civis e de contraguerrilha urbana”, a Rota virou
sinônimo de violência policial – primeiro contra os inimigos da
ditadura militar e, após a redemocratização, contra o criminoso
comum. Um levantamento feito pelo jornalista Caco Barcellos no
livro Rota
66
,
com base nos registros de 3.846 mortes ocorridas entre 1970 e 1992,
concluiu que 65% dos mortos pela Rota eram inocentes.

Para comandar os
homens da Rota, Ferreira Pinto escolheu Paulo Telhada, um
tenente-coronel com 36 mortes no currículo. Sob seu comando, os
policiais da Rota continuaram a fazer jus à má fama da tropa,
envolvendo-se em confrontos que deixavam dezenas de mortos – em
vários deles, policiais civis e promotores apontaram indícios de
execução. Num caso emblemático, policiais da Rota e do 18º
Batalhão mataram seis ladrões que se preparavam para roubar caixas
eletrônicos em um supermercado em Parada de Taipas, zona norte de
São Paulo, em agosto de 2011. Na época, testemunhas denunciaram que
os PMs teriam chegado ao local quatro horas antes do crime e
preparado uma emboscada para matar a quadrilha, atirando
principalmente nas cabeças, costas e pescoços.

A
possível emboscada de Taipas foi um dos casos denunciados pela ONG
Human Rights Watch numa
carta enviada ao governo paulista em 2013.
A entidade chamava atenção para os 247 mortos e 12 feridos pela
Rota entre 2010 e 2012. “O número elevado de pessoas mortas e o
fato que nenhum soldado da Rota em serviço foi morto nesses
episódios lançam dúvidas sobre o uso efetivo de armas não letais
por seus soldados e a real necessidade do uso de força letal em
todas as instâncias”, dizia o texto.

Telhada
teria sido vítima de um atentado, em 31 de julho de 2010, nas mãos
de um criminoso que disparou 11 vezes contra ele, errando todos os
tiros. Aí também o espírito da vingança deu as caras: nas 36
horas após o suposto atentado, a PM matou sete pessoas,
conforme reportagem de
O Estado de S. Paulo
.

Em
1º de agosto, a Rota matou um ex-detento, Frank Ligieri Sons, irmão
de um sargento da PM, que teria disparado tiros e jogado um coquetel
molotov contra a sede da tropa. Um relatório sigiloso do Dipol
(Departamento de Inteligência da Polícia Civil),divulgado
pela Folha
de S. Paulo
,
levantou suspeitas de que os atentados contra Telhada e a sede da
Rota tivessem sido forjado, mas nada ficou provado.

Ao
contrário. A história do atentado ajudou a fortalecer a imagem de
Telhada junto à população que já o admirava pelos discursos
inflamados em que comemorava a morte de “vagabundos” pela Rota.
Telhada entrou para a reserva em novembro de 2011 e, no ano seguinte,
foi eleito vereador pelo PSDB, passando a integrar a “bancada da
bala” da Câmara Municipal de São Paulo, ao lado dos ex-PMs Álvaro
Camilo (PSD) e Conte Lopes (PTB). Seu padrinho foi Ferreira Pinto,
que o convenceu a fazer carreira na política.

Sangue
com sangue

Com
a saída de Telhada, o comando da Rota passou para Salvador Modesto
Madia, que tinha um perfil parecido com o de seu antecessor, com um
longo histórico de envolvimento em ocorrências violentas, entre
elas a participação no massacre de 111 presos no Carandiru, em 1992
– uma tragédia que contribuiu para criar o ambiente que levaria à
criação do PCC, no ano seguinte (veja a cronologia no fim da
reportagem ). Com Madia, a Rota continuou a fazer mais e mais
“derrubadas”, que é como os PMs chamam as ocorrências com
morte.

A
violência da PM não demoraria a receber uma resposta do crime
organizado. “Quando o governo coloca a Rota para combater o PCC,
com algum direcionamento, explícito ou não, que leva à execução
de pessoas e produz um número de mortes muito elevado, acaba
rompendo uma trégua precária que havia com a facção”, aponta
Camila.

Em
2011, o PCC aprova uma nova versão do seu estatuto, que recebeu um
item prevendo a vingança contra as execuções da polícia. “Todo
integrante tem o dever de agir com serenidade em cima de opressões,
assassinatos e covardias realizadas por agentes penitenciários,
policiais civis e militares e contra a máquina opressora do Estado”,
dizia o texto, que acrescentava: “Vida se paga com vida e sangue se
paga com sangue”.

A
guerra ia começar.

Um
pouco insensíveis”

Ele
é Antonio para a mulher, Ferreira para a PM e Pinto para a Civil.”
Mais comum do que a piada do pavê entre alguns policiais, a anedota
mostra como alguns setores da Polícia Civil se sentiam menosprezados
durante a gestão Ferreira Pinto, especialmente com a decisão de
confiar à Rota as investigações sobre o PCC, antes conduzidas
pelos policiais civis do Deic (Departamento de Investigações sobre
o Crime Organizado).

A
opção de Ferreira seria fruto de sua formação militar – entre
1964 e 1979, ele atuou como oficial da PM no interior paulista. Na
opinião de um delegado, que falou à reportagem sob a condição de
anonimato, a violência da Rota faz parte de uma visão militarizada
da segurança pública, que vê os criminosos e os moradores das
periferias como membros de um mesmo exército inimigo a ser
eliminado.

“Alguns
fazem uma ideia de mim que não corresponde ao que sou”, rebate
Ferreira Pinto, em um final de tarde de sexta-feira, no hall de um
flat em Moema. Em tom ponderado, entre baforadas de charuto e goles
de vinho tinto Château La Motte, Ferreira enumera argumentos para
rebater a fama de truculento. “Nunca falei que bandido bom é
bandido morto, muito pelo contrário”, afirma. “Eu acho que, se
não for no confronto, é covardia matar o cara depois de dominado,
em qualquer circunstância.”

O
ex-secretário também diz que nunca encarou a segurança pública
com o olhar de policial militar. “Eu saí da PM há 33 anos, no
tempo em que até a farda era de outra cor”, afirma. “Naquela
cadeira, eu sempre agi e reagi como promotor.”

De
fato, na maior parte da vida Ferreira atuou no Ministério Público,
onde ingressou após deixar a polícia. Além de promotor, foi
assessor da Corregedoria-Geral do MP e procurador de justiça. Foi um
dos criadores da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP),
logo após o massacre do Carandiru. Assumiu a SAP em maio de 2006,
convidado pelo governador Cláudio Lembo (então PFL, hoje DEM), em
meio a um duro confronto entre o Estado e o PCC. Três anos depois,
trocou a Administração Penitenciária pela Segurança Pública,
nomeado pelo governador José Serra. Conseguiu que sua antiga cadeira
na SAP fosse ocupada Lourival Gomes, seu secretário-adjunto e homem
de confiança.

Nascia,
assim, uma dobradinha entre as pastas da Segurança Pública e
Administração Penitenciária para vigiar e combater o PCC, com a
participação do Ministério Público e da Rota. A base eram escutas
feitas nos celulares dos presos – sempre a partir de pedidos feitos
pelo MP e com autorização da Justiça, segundo Ferreira. O conteúdo
das escutas, segundo ele, era repassado à Rota, que tinha a missão
de investigá-las. “A nossa principal medida [contra
o crime organizado]
 foi
colocar a PM para fazer parte desse processo”, afirma.

As
pistas levantadas nas escutas levaram a Rota a fazer prisões e,
muitas vezes, matar suspeitos. O ex-secretário garante que as mortes
nunca fizeram parte desse planejamento, embora reconheça que a
polícia paulista é violenta. “Sei os valores que os PMs cultivam,
e infelizmente, pelo dia a dia, eles são um pouco insensíveis com
relação a lesão corporal e a crimes contra a vida”, diz. Num
outro momento da entrevista, defende que a PM é violenta dentro dos
limites legais. “Em 55% dos casos de confronto com a polícia não
tem evento de morte. Os bandidos são presos vivos ou fogem”,
afirma.

Perguntado
sobre os indícios apontando a relação entre grupos de extermínio
e ataques contra policiais nos crimes de 2012, afirma: “Alguém
numa moto, ou num carro escuro, pode ser briga de facção, briga de
tráfico, disputa por ponto, e falam: ‘vamos debitar na conta da
PM’”. E acrescenta: “Tenho convicção de que não tem grupos
de extermínio na polícia”.

“O
Estado não pode abrir mão de sua autoridade, senão fica um Estado
frouxo”, continua. “Com um Estado frouxo, o tráfico se
multiplica e o bandido, quando vai fazer um assalto, vai drogado e
põe fogo no dentista. Numa ação forte e enérgica da polícia, a
violência é uma contingência.”

Para
mim, aquilo foi uma execução”

O
estopim que deu início à guerra de 2012 foi aceso na noite de 28 de
maio de 2012 em um lava-rápido na favela Tiquatira, na Penha (zona
leste), onde policiais da Rota mataram seis homens. Segundo a
polícia, os suspeitos participavam de uma reunião para organizar o
resgate de um preso no Centro de Detenção Provisória do Belém.
Eles teriam morrido numa “resistência seguida de morte”, ao
atirar contra os PMs.

Entre
os mortos estava Anderson Minhano, homem forte de Marcos Willians
Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC. Baleado no lava-rápido,
Minhano foi socorrido por três policiais da Rota para um
pronto-socorro em Guarulhos, mas não resistiu e morreu.

Não
foi bem isso o que viu uma testemunha vizinha do Parque Ecológico do
Tietê que ligou para o 190. Em seu telefonema, ela descreve como os
policiais da Rota teriam parado no acostamento da Rodovia Ayrton
Senna, a caminho do hospital, e executado Minhano. “Ai, mais tiro,
ai, meu Deus! Ele está atirando e vai atirar de novo. Ai,
misericórdia! Ai, Jesus, mais tiro! Isso é à queima-roupa, mesmo,
viu. Olha, só Deus na vida desse homem, se ele sobreviver pra contar
a história”, narra a testemunha, na gravação divulgada pelo
Fantástico, da Globo.

Mesmo
o ex-secretário Ferreira Pinto afirma que a Rota praticou uma
execução na Penha. “Assim que fiquei sabendo, liguei para o
comandante-geral da PM e falei: ‘prende os caras’. Para mim,
aquilo foi uma execução”, conta.

A
defesa dos PMs negou o crime, afirmando que a testemunha não teria
condições de visualizar uma execução da distância em que estava,
e alegou que a viatura havia parado na rodovia porque um dos
policiais estava com cãibras.

A
versão convenceu o tribunal do júri por duas vezes. Inicialmente, o
sargento Carlos Aurélio Thomaz Nogueira, o cabo Levi Cosme da Silva
Júnior e o soldado Marcos Aparecido da Silva foram absolvidos num
julgamento realizado cinco meses após o crime. A pedido do
Ministério Público o julgamento foi anulado, e um novo júri
ocorreu em 14 de maio deste ano. Uma das testemunhas de defesa foi o
empresário e apresentador de tevê Roberto Justus, que se manifestou
a favor do sargento Nogueira, afirmando que o acusado fazia a
segurança de sua família havia mais de 15 anos.

Independente
das decisões da justiça, o PCC havia dado veredito dias após a
morte de Minhano, abrindo a temporada de caça aos policiais
militares.

Covardias
de bandido e de polícia

Logo
após a chacina no lava-rápido da Penha o PCC passou a direcionar
ataques contra policiais militares. Dessa vez, a facção adotou uma
estratégia bem diferente das ações praticadas durante os dois
ataques anteriores que disparou contra o Estado. A primeira grande
ação do PCC, em 2001, foi uma megarrebelião que envolveu 29
unidades prisionais. O ataque seguinte do Comando, em maio de 2006,
ocorreu dentro e fora das prisões: além de promover 82 motins no
sistema prisional, os criminosos mataram 43 agentes públicos,
incluindo policiais, guardas civis agentes penitenciários e até um
bombeiro.

Em
2012, os ataques do PCC foram mais discretos e direcionados. Não
houve rebeliões nos presídios. As ações ocorriam nas ruas, quase
que exclusivamente contra policiais militares.

“Os
ataques de 2006 tiveram como resposta do Estado uma repressão
grande, tanto da polícia como no sistema prisional. Muitas
lideranças do PCC ficaram por muito tempo no castigo do RDD (Regime
Disciplinar Diferenciado)”, afirma Camila, referindo-se ao regime
no qual o preso fica 22 horas por dia trancado sozinho na sela. Em
2012, os ataques menos espetaculares, que podiam ser confundidos com
assaltos, dificultava para as autoridades associar diretamente os
crimes à facção. “O PCC fez o enfrentamento de uma forma que não
expôs as lideranças que estavam presas à retaliação direta pelo
Estado, tanto que poucas lideranças acabaram punidas em 2012”,
lembra a pesquisadora.

Nesses
crimes, o PCC agia com a mesma covardia que dizia condenar na ação
do Estado. Os policiais eram mortos em seu horário de folga, pelo
único motivo de serem policiais militares. Uma das vítimas, por
exemplo, a soldado Marta Umbelina da Silva de Moraes, 44 anos, uma PM
de perfil administrativo, que provavelmente nunca havia atirado em
alguém, levou dez tiros ao chegar em casa, na Vila Brasilândia
(zona norte), diante da filha de 11 anos, em 3 de novembro.

Nesse
caso, como em outros, não demorou para o espírito da vingança se
manifestar. Dois dias após a morte de Marta, a dois quilômetros do
local onde ela havia sido baleada, um Celta prateado se aproximou de
um grupo de jovens em uma esquina e disparou aleatoriamente. Dos três
baleados, apenas um sobreviveu. O crime ocorreu a cerca de 100 metros
de onde estava uma viatura policial. Mesmo assim, segundo
testemunhas, os atiradores foram embora sem pressa.

Parentes
e amigos das vítimas contaram que nenhum deles tinha relação com o
crime. Um dos mortos, filho de uma gerente de banco, voltava da
academia e tinha acabado de se matricular em um curso de
administração de empresas.

No
dia seguinte à matança, a reportagem encontrou os amigos dos
rapazes reunidos em frente à casa de um deles. Estavam a caminho do
enterro, vestindo camisetas com os rostos dos amigos mortos. De
repente, foram cercados por policiais militares, que apontaram armas
para o grupo e, aos gritos, obrigaram todos a encostar num muro
enquanto eram revistados. A quebrada já nem podia chorar impunemente
os seus mortos.

Da
ponte pra cá…

Nem
chorar, nem trabalhar ou estudar, muito menos festejar. Viver se
tornou muito perigoso nas quebradas da Grande São Paulo ao longo
daqueles meses. Há relatos de que policiais fardados ordenavam
toques de recolher após as 22h. O medo levou o comércio a fechar em
pleno dia no Jardim João 23, na zona oeste, e em Perus, na norte. À
noite as pessoas se trancavam em casa. “Inventa de passar aqui
depois das nove da noite para você ver… Não tem ninguém na rua.
Onde tem uma turminha, eles metem bala”, contou, em novembro, um
comerciante de 50 anos do Jardim Comunitário, em Taboão da Serra.

Em
Jangadeiro, bairro da zona sul, funcionários de padarias e mercados
disseram ter sido orientados a voltar para a casa com a roupa do
trabalho após o expediente, para que não fossem confundidos com
“suspeitos” e, talvez, assassinados. “Um amigo disse que estava
voltando do trabalho à noite, com mochila nas costas, quando uma
moto parou do lado, em uma rua aí em cima. O garupa ia atirar, mas o
da frente disse ‘para, deixa para lá, esse é trabalhador’. E
olha que é só tiro certeiro, cara, pescoço e coração”, contou
um manobrista de 23 anos, do Jardim São Luís, também na zona sul.

No
mesmo bairro, um cozinheiro relatou o clima de terror em que sua vida
havia se transformado. “Se vejo dois caras de moto, já penso:
‘Será que é a minha hora de morrer?’. Não vou tomar mais
cerveja de costas para a rua no bar”, contou. Apesar do medo, o
patrão, morador do centro expandido, não o deixava sair mais cedo
do trabalho. “Ele lá vai querer sabendo do que está acontecendo?”

Tinha
muita gente que não sabia do que estava acontecendo. Ao contrário
do que havia ocorrido em maio de 2006, quando o pânico tomou conta
de São Paulo inteira, a guerra de 2012 não atravessou a ponte João
Dias (símbolo da fronteira entre centro e periferia na capital
paulista). Mas houve uma exceção.

e
da ponte para lá

A
exceção foi o assassinato do publicitário Ricardo Prudente de
Aquino, 39 anos, em 18 de julho, na zona oeste de São Paulo. Após
fugir de uma tentativa de abordagem da PM na Vila Madalena, Ricardo
foi baleado na Avenida das Corujas, no Alto de Pinheiros. Socorrido,
morreu no Hospital das Clínicas. Não tinha arma.

Uma
história muito parecida com centenas de outros crimes ocorridos na
mesma época. Mesmo assim, ganhou mais espaço na mídia do que
qualquer outro, talvez por envolver uma vítima branca, de classe
média, moradora do centro expandido.

A
resposta dada pelo Estado também foi diferenciada. Em 15 de outubro
do ano passado, a Polícia Militar expulsou os três acusados pelo
crime: o sargento Adriano Costa da Silva Caire e os soldados Robson
Tadeu do Nascimento Paulino e Luís Gustavo Teixeira Garcia. A
expulsão ocorreu antes de os PMs serem julgados pelo tribunal do
júri, o que é incomum.

Não
me mata, pelo amor de Deus, não me mata”

Em
meio à guerra, parte dos policiais adotavam ações que tinham mais
a ver com táticas de choque e pavor do que com combate ao crime. Em
1º de julho, dois PMs do 14º Batalhão, de Osasco, encontraram
cinco pedras de crack com um homem que voltava para casa, de
madrugada, pela avenida Martin Luther King.

Segundo
o Ministério Público do Estado de São Paulo, os PMs ameaçaram
prender o suspeito por tráfico de drogas caso ele não aceitasse
levar os policiais até a “biqueira” onde havia comprado a droga,
localizada numa favela da Vila Dalva, na zona oeste de São Paulo.
Depois que o suspeito cedeu, a dupla chamou outros quatro policiais
e, juntos, invadiram a favela.

A
denúncia do MP indica que os policiais não estavam preocupados em
impor a lei ou preservar vidas. Não só não apreenderam as pedras
de crack, como ainda permitiram que o suspeito fumasse diante deles.
O mesmo suspeito foi obrigado a participar da entrada dos PMs na
favela, sendo usado como “escudo humano”. Os policiais trocaram
tiros com traficantes da “biqueira”, mas os criminosos fugiram.
Logo após o tiroteio, os PMs viram uma motocicleta com dois jovens
passar pela avenida Pablo Casals. Atiraram em ambos.

Nenhum
dos baleados estava armado, nem era traficante. Na direção da moto,
estava César Dias de Oliveira, 20 anos, orgulhoso da moto CBR 300
que havia comprado, três meses antes, com as economias do seu
salário de operário numa indústria têxtil. Na garupa, Ricardo
Tavares da Silva, mesma idade, amigo de infância de César, que
trabalhava como repositor num supermercado. Segundo uma testemunha,
Ricardo gritou “Socorro, não me mata, pelo amor de Deus, não me
mata” antes de ser baleado pelos policiais. Os dois morreram no
Hospital Regional de Osasco.

Quando
foi ao local do crime e conversou com os policiais que estavam ali,
diante da moto caída no chão e das marcas de sangue impressas na
ladeira, o pai de César, o eletricista Daniel Eustáquio de
Oliveira, hoje com 52 anos, aprendeu o que significava, na prática,
a expressão “resistência seguida de morte”. Ouviu de um PM no
local que “os dois meliantes” haviam sido mortos em troca de
tiros com a polícia. Naquele momento Daniel entendeu que as vítimas
eram tratadas como culpadas antes mesmo do início das investigações.

Temendo
uma apuração enviesada da polícia, Daniel pediu licença do
emprego por 45 dias e passou a conduzir suas próprias investigações,
que, entre outras provas, ajudaram os investigadores do DHPP
(Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) a chegar a uma
testemunha-chave da execução dos meninos. “Ela aceitou depor
porque, quando tinha 12 anos, a polícia matou o irmão dela”,
conta Daniel.

Os
seis policiais envolvidos no caso – o tenente Rafael Salviano
Silveira, o sargento Marcelo Oliveira de Jesus e os soldados Raphael
Arruda Bom, Cringer Ferreira Prota e Denis da Costa Martinez –
foram denunciados e aguardam julgamento. Graças à batalha solitária
de um pai, a morte de César e Ricardo é um dos raros casos, entre
os crimes de 2012, que caminha para terminar com uma provável
punição dos responsáveis.

Em
meio à guerra, Daniel conta que foi procurado por uma pessoa que se
disse integrante do PCC, que teria se oferecido para executar os PMs
que haviam matado seu filho. “Eu falei não para eles. Eu disse:
‘Cada policial envolvido no caso do meu filho tem pai, mãe, irmão,
esposa, filho. Eu não quero passar para esse pessoal o que estou
sentindo. Não vou arrumar um erro com outro”, afirma Daniel.

“Eu
quero provar a inocência do meu filho e que eles paguem pelo erro
que fizeram”, acrescenta o pai, que hoje leva uma tatuagem com um
retrato do filho no antebraço direito, em cima da inscrição “Meu
Herói”.

Quem
não reagiu está vivo”

Uma
das maiores “derrubadas” levadas a cabo pela Rota ocorreu em 11
de setembro, quando os PMs mataram nove pessoas em Várzea Paulista,
interior do estado. Oito deles eram suspeitos de participar de um
“tribunal do crime” organizado pelo PCC para julgar um morador
acusado de estupro. A nona vítima da Rota era o réu do tribunal,
que já havia sido julgado e absolvido em um “debate” promovido
pelos criminosos. A polícia afirmou que Maciel Santana da Silva, 21
anos, portava uma pistola 9 mm, com sete cartuchos íntegros, no
suposto tiroteio, mas não soube explicar porque ele estaria armado.

A
ação contou com 40 homens da PM. Segundo o boletim de ocorrência
registrado na época, 17 integrantes da Rota efetivamente usaram suas
armas: foram 61 disparos. Na mesma noite, o comando-geral da PM se
apressou em dizer que a ação havia sido legítima. Toda a cúpula
da segurança pública do Estado seguiu a mesma toada. O governador
Geraldo Alckmin (PSDB) também aprovou operação. “Quem não
reagiu está vivo”, disse,
à época.

Apenas
dois dias após a chacina o próprio Ministério Público Estadual em
Várzea Paulista afirmou que não via qualquer indício de
irregularidade. Segundo pessoas próximas ao local da matança,
policiais da Rota checaram cuidadosamente com as empresas da região
se as câmeras de vigilância haviam flagrado a ação.

Troca-troca

A
chacina de setembro foi seguida pela segunda onda de violência,
ainda maior que a que se iniciou no meio do ano. O último trimestre
de 2012 trouxe consigo 1505 homicídios no Estado, um aumento de
33,77% em relação ao mesmo período do ano anterior (1125). Na
capital, a situação foi ainda pior: foram 450 casos, 66,66% a mais
que em 2011.

A
matemática da morte foi um dos fatores que pesaram na decisão de
Geraldo Alckmin de substituir Ferreira Pinto no comando da SSP.
Segundo pessoas ligadas à cúpula da segurança pública, Alckmin
trazia os números anotados em um caderninho com o escudo do Santos,
seu time de coração, e cobrava um melhor desempenho no setor que,
até pouco tempo, era sua melhor estatística para vender uma São
Paulo segura ao eleitorado. Sem os resultados que esperava, passou a
ligar diretamente para os subordinados do então secretário.

Na
tentativa de conter o conflito, o governo apertou o cerco a duas
lideranças do PCC. Um deles foi Francisco Antonio Cesário da Silva,
o Piauí, um dos chefes do tráfico na favela de Paraisópolis, que
estava foragido desde maio, quando ganhou o direito de passar fora da
cadeia o Dia das Mães. Uma operação conjunta entre o Gaeco (Grupo
de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) e a Polícia
Federal prendeu o criminoso enquanto ele acompanhava uma partida de
futebol em Itajaí (SC), em 27 de agosto. Em novembro, Piauí foi
transferido para o Presídio Federal de Rondônia, em Porto Velho.

Outra
liderança do PCC que o governo também mandou para Porto Velho, na
mesma época, foi Roberto Soriano, o Tiriça.  Soriano estava
detido no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) da penitenciária
Presidente Bernardes (SP), desde que foi pego, em setembro de 2012,
tentando mandar, por meio de um bilhete, uma ordem para que seis PMs
fossem assassinados por integrantes da facção.

Nada
disso serviu para estancar o derramamento de sangue nas ruas, e nem
para segurar o secretário da Segurança Pública no cargo. Em 22 de
novembro, Ferreira Pinto deixou o cargo. Em seu discurso de
despedida, Ferreira fez questão de defender a atuação da Rota,
que, segundo ele, “cumpriu seu papel com muita galhardia”.


o substituto de Ferreira, o promotor Fernando Grella Vieira, que
havia sido procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo,
assumiu a Segurança Pública prometendo resgatar o respeito aos
direitos humanos em sua atuação. “Não se pode tolerar a omissão
do Estado, mas não se pode aceitar sob qualquer fundamento a
violação dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. A
boa ação é a que combina o irrestrito respeito aos direitos
humanos e a ação efetiva do Estado”, afirmou.

Um
recado: parem de matar

Os
compromissos de Grella foram colocados à prova em seus primeiros
dias, com a chacina do Jardim Rosana, em 4 de janeiro de 2013,
descrita no início dessa reportagem. Esclarecer o crime era
fundamental para dar fim ao ciclo de violência.  Responsável
pela investigação, o Departamento de Homicídios e Proteção à
Pessoa, da Polícia Civil, contou com a ajuda do batalhão de área e
da Polícia Científica para chegar aos autores da matança. Todo o
arsenal do 37º BPM (Batalhão da Polícia Militar) ficou à
disposição de peritos: ao analisá-las diligentemente, descobriram
uma das balas disparadas no bar havia saído de uma das armas
armazenadas ali – foi a 86ª arma a ser analisada.

Na
coronha de uma espingarda calibre 12 havia sangue do DJ Lah. Como
dominó, os participantes da chacina foram caindo um a um. Como havia
vontade política de esclarecer o crime, a polícia usou o que tinha
de melhor.

Foram
dez indiciados pela chacina do Jardim Rosana, logo nos primeiros dias
após a chacina. Menos dos que os 14 homens que, segundo os moradores
da comunidade, participaram do crime. Ainda assim, era um recado
claro do novo secretário: as ações de extermínio contra a
periferia não seria toleradas com tanta facilidade.

O
outro recado de Fernando Grella veio na forma de uma resolução,
publicada pela Segurança Pública em 8 de janeiro, quatro dias após
a chacina do Rosana. A Resolução nº 5 proibia que policiais
fizessem o resgate de baleados em confrontos, reservando a tarefa
para o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), da
prefeitura. Embora Grella nunca tenha admitido publicamente o motivo
real da medida, quem acompanha os bastidores da ação policial sabia
do que se tratava. A intenção era impedir que policiais fizessem o
“resgate” de suspeitos que já estavam mortos, apenas para
modificar o local do crime e atrapalhar o trabalho da perícia, ou
que a PM executasse os feridos a caminho do hospital.

A
mesma resolução incluía um outro item alterando o termo
“resistência seguida de morte” para “morte decorrente de
intervenção policial”, uma antiga reivindicação de organizações
de defesa dos direitos humanos.

As
medidas foram criticadas pelo antigo secretário. “Quando o governo
fala que o policial não pode socorrer o cara que está baleado está
fazendo um juízo precipitado de que o policial vai levar o cara até
o pronto-socorro e vai matá-lo”, diz Ferreira Pinto. E garante:
“Isso não acontecia. Muitas vidas foram salvas pelo
pronto-atendimento”.

Seja
como for, as medidas parecem ter posto fim à guerra de 2012 e
fizeram cair os números da letalidade policial. Em 2013, foram 334
mortos por PMs em serviço contra 547 em 2012 – queda de 38,9%. Por
outro lado, a queda na letalidade teve lá os seus limites: no mesmo
período, houve um aumento no número de mortos por PMs em horário
de folga: passou de 160 para 233 (45,6%).

Depois
de 2012

O
governo Alckmin, contudo, não teve o mesmo sucesso em investigar e
punir os responsáveis pela guerra de 2012. O DHPP ficou
sobrecarregado de inquéritos durante o período e, segundo
policiais, com falta de gente para tocar o serviço. Usando dados
obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem
descobriu que o departamento ficou responsável por investigar 584
assassinatos entre 29 de maio de 2012 e 4 de janeiro de 2013.

Até
janeiro de 2014, um ano após a chacina que marcou o fim do ciclo de
violência, apenas 12,8% (75) dos casos tinham sido esclarecidos, com
indiciamento dos autores. No mesmo período, 34 PMs foram indiciados
por homicídios dolosos cometidos durante o serviço.

A
impunidade para os crimes de 2012 talvez ajude a explicar porque
casos parecidos tenham continuado a ocorrer. Em 17 de abril de 2013,
ataques de homens encapuzados mataram quatro e balearam sete em
Osasco e Carapicuíba, na Grande São Paulo, como resposta à morte
de um policial militar ocorrida em fevereiro, em Osasco. Dois PMs
foram presos pelo crime.

Neste
ano, o espírito da vingança encarnou em Campinas, onde, em 12 de
janeiro, o PM Arides Luiz dos Santos foi morto num confronto com dois
assaltantes. Em questão de horas após o crime, atiradores em um
carro já tinham matado 12 pessoas em bairros da periferia, na maior
chacina da história da cidade.

As
chacinas de Osasco e Campinas revelam que o espírito da vingança
continua a atuar na corporação, como um encosto que o governo
paulista não consegue exorcizar.

A
solução não parece próxima, já que a Secretaria da Segurança
Pública nem mesmo reconhece a existência do problema. Perguntada
sobre as evidências que apontariam para a possível ação de grupos
de extermínio formados por policiais durante o segundo semestre de
2012, a assessoria de imprensa da secretaria respondeu apenas isso:
“A SSP não trabalha com hipóteses, mas informa que as
corregedorias das polícias apuram a participação de policiais em
qualquer tipo de crime. E são punidos quando comprovadas as
responsabilidades”.

E
acrescentou, burocraticamente: “Esclarece, ainda, que não
DYNAMICua com o desvio de conduta de policiais. Em 2013, a Polícia
Militar instaurou 2.386 inquéritos e demitiu 360 PMs. Já na Polícia
Civil foram 1.362 inquéritos e 183 demitidos”.

A
resposta da assessoria de imprensa da Polícia Militar vai na mesma
linha, com um pouco mais de pompa. “Há 182 anos, a Polícia
Militar zela pela segurança da população de bem do Estado, de dia,
de noite, no asfalto, na terra, onde houver cidadãos. Isso é o que
a instituição tem feito, sempre”, afirma. “Todos os casos em
que haja indícios de suposto envolvimento de policiais militares em
crimes, há investigação implacável da Corregedoria da PM, além,
evidentemente, dos inquéritos realizados pela Polícia Civil.”

Festa
no céu

Enquanto
isso, o Estado continua a agredir e matar nas periferias. Mesmo fora
dos períodos mais acirrados de conflito, como em maio de 2006 ou no
segundo semestre de 2012, os abusos nunca pararam. A paz apenas
significa que as mortes prosseguem em ritmo mais lento, e com mais
discrição.

“A
polícia continua a perseguir os moradores. Houve ameaças e
suspeitas de execução, mas nada disso aparece na mídia”, conta
Doraci Mariano,
53 anos, líder comunitário do Jardim Rosana.

Rita
de Cássia, mãe de Brunno, confirma. “Tem policiais que
participaram da chacina e não foram presos. Eles aparecem na
comunidade para ameaçar as testemunhas. Dizem que agora vão matar
sem [touca] ninja”, conta.

Num
começo de tarde de uma quarta-feira, Rita de Cássia prepara uma
carne de panela na cozinha de um sobrado no litoral paulista, onde
passou a morar após a morte de Brunno. A casa está cheia de fotos
do menino gordo e alegre, morto aos 17 anos, formado em instalação
de som automotivo pelo Senai (Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial),
que já havia instalado equipamentos de som inclusive nos carros de
policiais do bairro. O celular toca. Ao atender, Rita comenta: “Sabia
que hoje é o aniversário de 19 anos do Brunno? É dia de festa no
céu”.

Após
o almoço, ela comenta com o repórter, num tom calmo e preciso: “Meu
filho não morreu. Eles tiraram a vida dele. Morrer é uma coisa. Ser
matado é outra. Não morreu no tempo dele”. Hoje, para seguir
vivendo, Rita se agarra à esperança de ver punidos todos os
assassinos de Brunno. “Vou continuar lutando até que me matem ou
até que se faça justiça.”

Pessoas
como Rita de Cássia ou Daniel Eustáquio fazem parte de uma multidão
de vítimas invisíveis da violência, que carregam dentro delas as
marcas deixadas pelos tiros que atingiram seus familiares e amigos.
Gente que não aparece nas estatísticas, os parentes e amigos dos
mortos são vítimas ocultas que têm as vidas transformadas pela
violência.

“Essas
pessoas relatam que a vida acabou. Não sentem mais felicidade e
vivem com medo. Há relatos de pessoas que perderam a fé e deixaram
de frequentar seus lugares de culto. Elas mudam de casa, largam o
trabalho. Perdem os vínculos sociais que tinham”, relata a
psicóloga Clodine Janny Teixeira, doutoranda do Instituto de
Psicologia da USP, que estuda os efeitos da atuação dos grupos de
extermínio na zona sul de São Paulo.

Clodine
lembra que um estudo feito pelos pesquisadores Dayse Miranda, Doriam
Borges, Glaucio Ary Dillon Soares, publicado no livro As
vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro
 (Record,
2006), calculou que cada morte violenta gera outras 30 dessas vítimas
“ocultas”. Essa conta revela que a guerra de 2012 deixou milhares
de traumatizados. Gente que, conforme Clodine, passa a conviver
diariamente com “uma sensação de desproteção, o medo de que
podem ser mortos a qualquer momento só porque são negros e moram na
periferia”.

E
o medo, lembra Clodine, é uma importante ferramenta de controle.
“Minha hipótese é de que isso é intencional. Manter as pessoas
com medo é uma forma de impedir que se articulem e lutem por seus
direitos.”

Expediente:
Presidente: Fabiano Moura • Secretária de Comunicação: Sandra Trajano  Jornalista ResponsávelBeatriz Albuquerque • Redação: Beatriz Albuquerque e Brunno Porto • Produção de audiovisual: Kevin Miguel •  Designer Bruno Lombardi