Érica Kokay: “Uma sociedade que desumaniza mais de metade dela mesma vai reproduzir relações de violência”

Nesta segunda, 31 de março, o
Sindicato fechou a programação do mês da Mulher com uma palestra
da deputada federal Érica Kokay sobre a presença das mulheres na
política. Apesar
de representarem 51,95% do eleitorado no país, o percentual de
mulheres no Congresso Nacional não chega a 10%, de acordo com dados
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Dos 513
deputados federais, 9% são mulheres; d
os
81 senadores, 13 são mulheres (16%). Nas Prefeituras, elas ocupam
menos de 10% dos assentos e, nas Câmaras Municipais, cerca de 12%.

A palestra foi seguida de debate e,
depois, todos puderam desfrutar de um momento de confraternização.
Antes do evento, a equipe de comunicação do Sindicato conversou com
a deputada. Confira a entrevista.

SeecPE – Como a participação das
mulheres na política pode modificar o cenário machista em que
vivemos?

ÉricaKokay – Eu acho que nós
precisamos, e a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência
da República lançou recentemente uma campanha, com apoio da bancada
feminina na Câmara Federal, que é Mais Mulheres no Poder. Mais
mulheres no poder significa ocuparmos todos os espaços de decisão.
E também você ter as mulheres participando das esferas públicas de
decisão, de acordo com sua composição na sociedade, significa
fazer valer a democracia. A luta da mulher em defesa da equidade de
gêneros e direitos iguais é uma luta do conjunto da sociedade, para
que nós possamos ter uma sociedade de fato democrática e honrar a
Constituição, que fala em dignidade humana e coíbe todas as formas
de discriminação. Então essa constituição cidadã, que contou
com a participação das mulheres, ela precisa ser representada numa
sociedade onde o lugar de mulher seja em todo lugar. Essa é uma
questão que urge e que tem que estar na centralidade da agenda
nacional.

SeecPE – Que relação existe
entre violência e discriminação de gênero?

Érica Kokay – Nós vivemos numa
sociedade muito violenta, onde morrem todos os anos mais de 50 mil
pessoas. E, antes delas terem suas vidas literalmente ceifadas, há
um processo de desumanização simbólica. E isso se caracteriza,
também, na desumanização das mulheres. A humanidade tem alimentos
que são absolutamente imprescindíveis para sua existência. A
liberdade, por exemplo, liberdade de ser. E a condição de sujeito.
Tudo isso é fundamental para que nós nos reconheçamos como seres
humanos. Essas duas coisas – liberdade e condição de sujeito –
foram negadas às mulheres e ainda são negadas em grande medida no
nosso país. Esta desumanização é atestada em pesquisas como essa
última, do Ipea, na qual as vítimas se transformam em algozes e se
justifica a violência contra a mulher. Se existe uma sociedade que
subalterniza, discrimina e desumaniza mais de metade dela mesma, essa
é uma sociedade que vai reproduzir relações de violência.

SeecPE – Mas se a mulher não
assume uma posição de sujeito, como ela pode ocupar espaços de
poder?

Érica Kokay – Isso não é
uma questão de vontade. Uma forma de perpetuar a cadeia de dominação
é atribuir que a subalternização da mulher é construída pela
própria mulher, por sua vontade. Mas isso é um feixe de relações.
Nós ainda não fizemos o luto do colonialismo, onde o país era
entregue aos pedaços ou em tiras aos amigos do rei, o que fazia com
que esses donos da terra se sentissem também donos das mulheres. O
país foi entregue aos pedaços com as pessoas que ali estavam.
Então, esse sentimento de propriedade da terra fez com que eles se
sentissem também proprietários das pessoas. Então a ausência de
luto do colonialismo, da própria escravidão – que é um processo
de desumanização muito nítido que o Brasil vivenciou –, ou da
ditadura – quando o Brasil foi arrancado dos brasileiros e
brasileiras… esse país que não fez o luto de seus períodos
traumáticos convive com traços destes períodos em sua
contemporaneidade. Isso faz com que nós tenhamos construções
históricas, sociais, culturais que precisam ser vencidas e
enfrentadas. As mulheres nãpo estão nos espaços de poder porque a
sociedade constrói tetos e paredes de vidro. Como são de vidro, são
invisibilizados. Então você não pode enfrentar o que você não
admite que existe e, como as barreiras são invisíveis, a sociedade
culpabiliza as mulheres porque elas são discriminadas. Se a gente
tem uma divisão absolutamente desigual das tarefas domésticas e se
a mulher ocupa o espaço público – porque o mundo do trabalho
sempre foi ocupado pelas mulheres negras, cria-se a dupla e tripla
jornadas. Tudo isso são instrumentos de opressão que dificultam a
vida pública e a participação das mulheres enquanto sujeito
coletivo.

SeecPE – E aí como se enfrenta
isso?

Érica Kokay – Com políticas
públicas.

ecPE – Mas se as mulheres estão
ausentes dos espaços de poder, quem vai ter a iniciativa das
políticas públicas?

Érica Kokay – Estar nos
espaços de poder é estruturante, porque são espaços que
determinam as políticas públicas. A partir deles, você modifica
outras relações. Mas como tudo na vida, ele é fruto. Ele é
semente de uma nova realidade, mas também é fruto de uma realidade
antiga. Todo fruto também é semente. E toda semente virará um
fruto. Então, ao mesmo tempo que ocupar espaços estruturantes é
absolutamente importante para que você possa transformar a
sociedade, o vazio de mulheres nos espaços de poder é consequência
de relações que precisam ser enfrentadas. A sociedade civil
organizada pode exigir políticas públicas, inclusive que se abram
espaços de poder para as mulheres. A maior revolução que eu acho
que aconteceu após a Guerra Mundial foi o movimento feminista. Ele
mudou relações e isso não fica restrito às mulheres, mas perpassa
toda uma sociedade, porque se ressignifica o humano. E isso é
essencial para que se possa combater uma sociedade que é de
desumanização. Desumanização inclusive pelo mercado, que captura
desejos, comportamentos. Há uma coisificação dos seres humanos e
que leva seres humanos a perderem suas vidas por conta de coisas.

SeecPE – Essa coisificação dos
seres humanos está também na raiz da violência doméstica?

Érica Kokay – A violência
contra a mulher não é apenas física. Existe uma violência que não
deixa marca na pele, mas é igualmente doída. As vezes, uma pessoa
se casa e o outro, o homem, na sua relação de poder patriarcal,
consequência da ausência de fechar os ciclos do colonialismo, vai
invadindo e determinando a forma de ser, de se vestir, de falar, as
relações sociais da mulher. Então, é uma invasão silenciosa,
encoberta por um pseudo-carinho, que vai invadindo, tomando conta,
arrancando pedaços… e quando a mulher olha pra dentro dela, não
há mais nada. Ela foi esvaziada enquanto pessoa, foi desalmada. E,
muitas vezes, quando ela busca reagir a isso, esta violência
silenciosa se transforma em uma violência que pode até ceifar
vidas. Porque ela já não existe enquanto pessoa. E a violência
doméstica é torturante. Como toda tortura, ela separa o corpo da
alma. E o corpo fica tão doído que você mesma busca separá-lo da
alma. Mas muitas vezes não se dá de forma linear. Há a violência,
o pedido de desculpas, a tentativa de se justificar, o carinho, o
beijo… e depois tudo se repete.

SeecPE – A mesma pesquisa que você
citou, do Ipea, mostra que a sociedade está menos tolerante contra
os casos de violência doméstica com agressões físicas. Mas e as
agressões que a sociedade não consegue reconhecer?

Érica Kokay – Acho que a
gente avança pelas frestas que a gente consegue com nossas brigas,
nossas teimosias, fazendo revoluções diárias, muitas vezes
silenciosas. Existe uma intolerância para com a violência quando
ela é conhecida enquanto tal. A gente mede isso pelo nível de
denúncias no Disque 180, por exemplo. E se as pessoas estão
denunciando mais, estão desnaturalizando. Agora ainda é preciso
perceber as sutilezas e as diversas formas de violência. E a
violência doméstica é desestruturante porque a casa é muito
simbólica. Na rua, somos anônimos. É em casa que somos nós
mesmos, que temos nossas relações mais caras… e é terrível
pensar em mulheres que tem medo de voltar para a própria casa porque
não sabem o que vão encontrar. É como a tortura na época da
ditadura, por exemplo, que se expande para além do momento em que
ocorre instalando um medo permanente. As pessoas contam que ficavam
escutando os passos e imaginando se seria o momento em que se abriria
a cela e você iria ser torturada.

SeecPE – No caso da violência
rubana, são os homens as principais vítimas

Érica Kokay – E aí, de novo,
se encontra os efeitos da coisificação. Culturalmente, o papel de
provedor é do homem. Só que provedor já não é mais provedor do
feijão com arroz, das necessidades básicas. São os objetos de
consumo que a sociedade diz que todos tem que ter para serem
validados. Portanto, a violência urbana atinge mais os homens e a
doméstica mais as mulheres.

SeecPE – E quanto a violência
sexual?

Érica Kokay – Esta pesquisa,
do Ipea, que está sendo divulgada, mostra que 527 mil estupros
ocorrem todos os anos, 92% dos agressores são homens, a maioria tem
algum tipo de relação com a vítima e 70% dos casos atingem
crianças e adolescentes. Este é um quadro drástico. E a pesquisa
que mostra que a sociedade culpabiliza as mulheres vítimas de
estupro apenas desnuda, joga luzes sobre dados que já se expressam
nas próprias estatísticas de agressões sexuais. A criação das
delegacias das mulheres surgiu inclusive com o propósito de reduzir
a revitimização das mulheres: ela é vítima de estupro e depois
volta a ser vítima quando é culpabilizada. A delegacia
institucional é para impedir a revitimização institucional, que
esta pesquisa não mede: o delegado que pergunta porque a mulher
estava com aquela roupa, porque estava naquela hora naquele local…

SeecPE – Que tipo de políticas
públicas podem atuar prevenindo este tipo de situação?

Érica Kokay – Valorizar as
políticas culturais. Todas as políticas tem que ter recorte de
gênero, seja de assistência, seja habitacional, seja de geração
de renda, de saúde… todas devem ter recorte de gênero. Mas tem
uma política que é muito basilar, que é a educacional. Da
qualidade dela depende a qualidade de outras políticas. E as
políticas culturais também, porque estamos falando de construções
culturais e a sociedade patriarcal tenta se apropriar de uma
construção cultural para justificar a própria violência. Ora, se
foi construído, pode ser desconstruído. Isso pressupõe políticas
culturais. E é preciso que as mulheres tenham espaço de fala.
Quando se tem mulheres que convivem entre si, elas começam a
perceber que o problema não é delas, mas nas relações sociais.  

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