Brasileiro gasta mais com plano de saúde do que poder público

Maria precisava de uma consulta médica com um especialista. Embora
não fosse um caso de emergência, ela esperou quase dois meses para
conseguir uma consulta e o único lugar que tinha tal especialidade era a
50 km de sua residência. A situação fictícia parece ser o retrato do
serviço público de saúde mostrado pela grande mídia, mas é, na
realidade, o encontrado por usuários da saúde suplementar.

Atualmente,
de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 – Perfil
das Despesas do Brasil do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) divulgada em setembro, os brasileiros gastam 7,2% de
sua renda mensal com saúde, entre planos de saúde e remédios. Mas, como
explicar um aumento nos gastos com saúde por parte do cidadão, superando
os investimentos do poder público, e a qualidade dos serviços de saúde
cada vez mais precária?

Para Ligia Bahia, doutora em Saúde
Pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
esse fenômeno pode ser atribuído ao aumento das mensalidades e não
exatamente ao fato de mais brasileiros se vincularem aos planos
privados. Apesar do aumento, ela ressalta que a qualidade do serviço
prestado não acompanhou a mudança e que essa pode ser a única
alternativa para muitos brasileiros.

“A maioria das pessoas que
adquire ou se vincula via empresa empregadora a um plano de saúde
precário sabe que não pode esperar um atendimento igual ao do patrão ou
dos cidadãos brasileiros ricos. A expectativa de aderir a um plano
privado é a de escapar de dois grandes problemas do Sistema Único de
Saúde (SUS): a demora e a total despersonalização da assistência”,
explica Ligia.

Recentemente, a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS) divulgou que foi de R$ 1,27 bilhão o lucro líquido, no
primeiro trimestre de 2012, de cerca de mil operadoras de saúde ativas
no país.

Despesa pública x despesa privada – De
acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009, a despesa de
consumo das famílias brasileiras com bens e serviços de saúde chegou a
R$ 157,1 bilhões – 4,8% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009. Enquanto
isso, a despesa da administração pública com esses bens e serviços foi
de R$ 123,6 bilhões (3,8% do PIB).

Portanto, como também informa o relatório Estatísticas de Saúde Mundiais 2011,
da Organização Mundial de Saúde (OMS), a iniciativa privada fica com a
fatia de 56% diante de 44% dos gastos públicos com saúde. “É uma
contradição estrutural. O Brasil tem um sistema universal lastreado por
um financiamento de sistema segmentado. Ou seja, a expansão do mercado
de planos privados só nos distancia da efetivação do SUS”.

Para
Ligia Bahia, esse crescimento dos planos de saúde ainda interfere na
universalização do SUS. “Como as interfaces entre o setor privado e o
sistema público são muito extensas no Brasil, a existência de um mercado
de planos de saúde em expansão representa um obstáculo concreto à
universalização do direito à saúde. Os planos de saúde são os principais
vetores de desigualdade do sistema de saúde brasileiro”, analisa.

Baseado
em dados da OMS, o Conselho Federal de Medicina (CFM) mostra que o
governo brasileiro tem uma participação menor do que as suas
necessidades e possibilidades no financiamento da saúde pública. Do
grupo de países com modelos públicos de atendimento de acesso universal,
o Brasil é o que tem a menor participação do Estado (União, Estados e
Municípios). Esse percentual fica em 44%, quase a metade do que é
investido pelo Reino Unido (84%), Suécia (81%), e muito inferior a
países como a França (78%), Alemanha (77%), Espanha (74%), Canadá (71%),
Austrália (68%) e Argentina (66%).

O que a nova ‘classe média’ está consumindo? – De
acordo com Lígia Bahia, as coberturas dos novos planos para os
segmentos de renda C e D são ainda menos abrangentes do que as
tradicionais dos planos básicos brasileiros, que já são bem restritas.
“O desenho dos planos corresponde à acepção de diferenciação da
qualidade da mercadoria de acordo com o preço. O problema é que na saúde
tal distinção colide com todas as concepções sobre a igualdade
biológica da humanidade”, explica.

A professora lembra ainda que a
estratificação social não pode ser transposta para a saúde. “Se fosse
assim não seria necessário ter política de saúde. A estratificação
origina discriminações e privilégios que estão na origem de filas que
não andam e atendimento imediato de autoridades públicas e privadas e,
portanto a demora injusta e evitável no tratamento de pacientes graves”,
analisa.

Vale lembrar também que o próprio poder público ajuda a
financiar a saúde suplementar ao oferecer esse tipo de benefício como
parte da remuneração aos servidores. Ligia Bahia entende que falta
consciência sanitária aos servidores públicos, inclusive àqueles que
atuam em instituições de saúde. Muitos servidores públicos consideram
que a saúde pública é para os pobres e que o plano privado de saúde
ajuda porque desonera o SUS. O fato de os planos serem financiados com
recursos públicos é pouco divulgado e as negociações de
contingenciamento de salários em troca de alguns benefícios, que ocorrem
nas mesas de negociação, nem sempre ficam explicitadas”, considera.

Mercado da saúde – O
enfraquecimento do SUS em detrimento do crescimento dos planos de saúde
também pode ser observado em outros aspectos. Um exemplo é a aquisição,
anunciada no início de outubro, de 90% da empresa brasileira Amil pela
estadunidense United Health. Dependendo da interpretação, o assunto é
considerado inconstitucional, uma vez que está previsto na Constituição
Federal o veto a “participação direta ou indireta de empresas ou
capitais estrangeiros na assistência à saúde no país, salvo nos casos
previstos em lei”. No entanto, a Lei nº 9.656/98, conhecida como Lei
Geral dos Planos de Saúde, autoriza a participação de capital
estrangeiro. A questão, no mínimo, merece um sinal de alerta.

Isabel
Bressan, diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, em artigo
publicado na página da instituição, analisa a compra e aponta o
enfraquecimento do SUS em detrimento do crescimento dos planos de saúde.
“Certamente, o investidor americano acredita que caminharemos para ser
como nos EUA, onde o governo paga por planos mequetrefes para pobres e
idosos, garantindo para as empresas de saúde uma renda imensa gerada
pelo subsídio público.

Não por coincidência, há um projeto de lei
(PL 489/2011) nesse sentido, de uma deputada federal do Ceará (Ronalba
Ciarlini do DEM/RN), que propõe o pagamento de um adicional em dinheiro
para quem recebe Bolsa Família, para aquisição de plano de saúde. Há
também uma sugestão de representantes das seguradoras de saúde de que o
governo complemente o pagamento de planos para idosos como forma de
compensar os preços exorbitantes que cobram das pessoas com mais de 60
anos. Tudo com o dinheiro que certamente faltará ao SUS e aumentará o
lucro das empresas”, analisa.

De acordo com o artigo, esta
transição bilionária é uma nova ameaça à conquista efetiva do SUS.
“Conforme destacou um considerado consultor empresarial, a compra da
Amil por essa empresa americana deverá forçar a adoção de um novo modelo
de saúde no Brasil – o modelo americano”, enfatizou. (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz – www.epsjv.fi ocruz.br)

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