A mídia de praticamente todo o planeta dedica o 11 de setembro a
relembrar os ataques às torres do World Trade Center, em Nova Iorque,
que culminaram com a morte de 2.600 pessoas e serviram de pretexto para
que o presidente dos EUA, George W. Bush, desencadeasse uma onda de
ataques a outros países causando milhares de mortes e mutilações.
No entanto, outro 11 de setembro, mais antigo e que teve como personagem
também os EUA, segue como um fantasma a fustigar a consciência
norte-americana: o de 1973, quando forças militares chilenas, com apoio
explícito da CIA e do governo norte-americano, destituíram o regime
democraticamente eleito do médico socialista Salvador Allende.
Cenário para o golpe – Deputado, senador e ministro da Saúde, Allende foi eleito em 1970 após
ter concorrido à presidência e perdido seis anos antes. Eleito com
apenas 36% dos votos pela coalizão Unidade Popular, seu programa de
governo propunha transformações socialistas e levava militares e
ideólogos norte-americanos a arrepiarem os pêlos da nuca vislumbrando a
concretização da tese do efeito dominó.
Após sua eleição foi criada uma comissão especial sob tutela “a paisana”
do Departamento de Estado dos EUA para acompanhar a evolução dos
“problemas” latino-americanos. Entre os membros da Comissão estava o
então chanceler Henry Kissinger, que, ironicamente, receberia o prêmio
Nobel da Paz em 1973, mesmo ano do golpe. “Não vejo por que temos de
esperar e olhar um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade
de seu povo”, declarou o pacífico Kissinger logo após a vitória de
Allende.
A partir dessa Comissão, o golpe de estado contra um presidente
democraticamente eleito começou a sair do campo do desejo da direita
norte-americana e chilena e a adentrar no minado campo da política
conspiratória internacional.
O mundo, naquele final de anos 1960, vivia uma realidade muito
particularizada em todo o século XX. A revolução de Fidel Castro, em
Cuba, completava sua primeira década, sofrendo com o bloqueio econômico
determinado pelos EUA, mas mantendo firme a chama da construção de um
mundo livre da tirania ianque. Na França, e em diversos outros países,
os movimentos estudantis e populares transformaram 1968 no ano símbolo
do sonho de uma nova era.
Na Tchecoslováquia, a repressão à Primavera de Praga levou os movimentos
de esquerda a aprofundar a reflexão sobre o socialismo, seus caminhos
práticos e sua base teórica; no Vietnã, a guerra de ocupação
protagonizada pelos EUA enfrentava fortes resistências e prenunciava a
mais desmoralizante derrota para os exércitos do Tio Sam. Na Europa,
América Latina e África, os movimentos populares emergiam contra
governos despóticos e ditaduras corruptas.
O planeta era um barril de pólvora apontado contra os EUA, e o Chile
tinha de servir de exemplo de como o império trata seus desafetos. Uma
das primeiras medidas do então presidente Richard Nixon, logo após a
posse de Allende, foi autorizar o ex-diretor da CIA, Richard Helms, a
minar o governo chileno.
Na guerra econômica, os EUA lançaram no mercado internacional suas
reservas de cobre (à época, o principal produto de exportação do Chile),
fazendo com que o preço do minério despencasse juntamente com a
economia chilena. Começava o contínuo estrangulamento econômico do
Chile, ao mesmo tempo em que se planejava, pelos corredores de
Washington, os passos para financiar o golpe contra o governo de
Allende.
Fé cega, faca amolada – Sob boicote político e econômico, os três anos de Salvador Allende foram
de crise, milimetricamente planejada para colocar a população contra o
governo. O dia 11 de setembro de 1973 encontrou um presidente isolado,
protegido praticamente apenas pela Guarda presidencial, formada por
cerca de 60 jovens soldados com idade média de 20 anos. Setores
militares exigiam a renúncia de Allende, mas o presidente organizou a
resistência em La Moneda (residência oficial) e ainda acreditava na
lealdade do chefe das forças armadas, o recém-nomeado Augusto Pinochet.
Tanques e aviões bombardearam o palácio presidencial; 20 mísseis foram
disparados pelos caças. Com o prédio em chamas, Allende cumpriu sua
palavra de só sair do La Moneda morto. Ao tombar, o presidente tinha a
seu lado o revólver que lhe havia sido dado por Fidel Castro.
Pinochet havia assumido o comando do Exército duas semanas antes do
golpe, no lugar de Carlos Prats, deslocado para o Ministério do
Interior. Indicado pelo próprio Prats, a maior credencial de Pinochet
era, supostamente, não fazer parte do grupo que conspirava contra o
governo. “Eu acreditava que este general compartilhava com sinceridade
de minha profunda convicção de que a caótica situação chilena deveria
ser resolvida politicamente, sem golpe militar, já que esta seria a pior
solução”, escreveu Prats em suas memórias.
Jogue-o no mar – O cientista político Patrício Navia acredita que Pinochet “era o
candidato de consenso [para a vaga de chefe do exército] porque não
brilhava. Acreditava-se que ele seria leal ao governo porque não tinha
grandes idéias nem iniciativas”. Allende confiava em Pinochet a ponto
de, na manhã daquela terça-feira, 11 de setembro, ter incumbido o então
ministro da Economia, José Cademártori, de convocar Pinochet para
protegê-lo. “Chamem o Augusto, que é um dos nossos”, pediu Allende.
A quilômetros dali, em um quartel situado na zona leste da capital
Santiago, aquele que viria a ser um dos mais sanguinários ditadores da
América Latina, respondia ao apelo do presidente enviando por emissário a
exigência da rendição de Allende e oferecendo um avião rumo ao exílio.
No entanto, em transmissão via rádio para outros oficiais golpistas,
Pinochet detalhava seu plano. “… E, no caminho, os jogaremos de lá”. A
transmissão foi captada por um radioamador e publicada no livro
“Interferência Secreta”, da jornalista Patricia Verdugo, em 1997.
Golpe com sotaque ianque – A partir de 1999 os arquivos da CIA, do Pentágono e do FBI sobre as
operações secretas no Chile começaram a vir a público após forte pressão
sobre o então governo de Bill Clinton – à época, Pinochet estava preso
em Londres a pedido da justiça espanhola.
Em 19 de setembro do ano seguinte, a CIA enviou ao Congresso
norte-americano um relatório no qual se comprova que o chefe da polícia
secreta de Pinochet (Dina), Manuel Contreras, foi empregado da Agência
em 1975. “A CIA apoiou ativamente a junta militar após a derrubada de
Allende”, indicou o comunicado apresentado ao Congresso. “Muitos
oficiais de Pinochet estavam envolvidos em abusos sistemáticos dos
direitos humanos … alguns eram informantes ou agentes da CIA ou das
forças armadas americanas”, acrescentou o documento.
Contreras era funcionário da CIA em 1976 quando agentes da Dina
assassinaram, em Washington, Orlando Letellier, que havia sido ministro
das Relações Exteriores de Allende. A caçada continuava. O informe
também revelou que a CIA pagou US$ 35 mil a um grupo de militares
chilenos pelo assassinato, em 1970, do general René Schneider,
comandante-em-chefe do Exército fiel a Allende, durante fracassado golpe
de estado planejado por Washington. Os assassinatos de Letellier,
Schneider e diversos outros políticos chilenos fizeram parte do chamado
Plano Condor, coordenado também pela agência de inteligência dos EUA.
Caravana da morte – O que se assistiu no Chile após a queda de Allende foi um verdadeiro
extermínio levado a cabo pelo exército com a complacência do governo
norte-americano. Não são poucos os relatos das atrocidades cometidas
pelos golpistas, não somente as ocorridas no estádio nacional de futebol
de Santiago, local que se transformou em campo de concentração para
milhares de pessoas.
Foi para lá que o jovem compositor Victor Jara (alguém como um Chico
Buarque no Brasil) foi levado, teve as mãos decepadas porque se recusou a
parar de tocar seu violão; seus gritos de dor se misturaram a versos de
protestos, que só foram silenciados com um tiro em sua cabeça.
Em outro caso relatado pela jornalista Patrícia Verdugo, o advogado
Mario Silva Iriarte, de 37 anos, casado, cinco filhos, ouviu, logo após o
golpe, seu nome pelo rádio como procurado pela junta militar. Foi até
os militares para se entregar, porque “não tinha nada a ocultar”, como
disse para sua mulher. Foi torturado por mais de um mês antes de ser
executado.
Outros relatos dão conta da existência de pelotões militares de execução
sumária, que se dirigiam ao interior do país para caçar opositores ao
novo regime: eram as chamadas caravanas da morte. Um mês após o golpe, o
general Arellano Stark muniu-se de credencial assinada pelo próprio
Pinochet e saiu matando a granel. Baixava em guarnições, pedia listas de
prisioneiros e decretava sentenças capitais, cumpridas com requintes de
crueldade, eficientemente aprendidas na escola da base naval do Panamá,
ministradas por oficiais norte-americanos e agentes da CIA.
Ao todo se estima que mais de 15 mil pessoas foram assassinadas por
motivos políticos nos 17 anos de ditadura de Pinochet, mais de 30 mil
foram presas e torturadas e centenas continuam desaparecidas. Esse é o
saldo da intervenção norte-americana em 11 de setembro de 1973.