A marcha operária que percorreu a Andaluzia, no sul da Espanha, parecia,
no início, um quixotesco protesto idealizado por teimosos, radicais e
desesperados sindicalistas. Mas, passo a passo, mostrou a profundidade
da revolta e da revolução que vive hoje todo o Estado Espanhol. Foi a
continuidade heroica do levante mineiro, iniciado no norte, que se
insurgiu contra a brutal política de austeridade sobre os trabalhadores,
sintetizada no pacote de cortes do governo de Mariano Rajoy anunciado
em julho.
Dias antes da marcha, ativistas do Sindicato Andaluz de
Trabajadores (SAT), encabeçados pelo seu líder, Sánchez Gordillo,
entraram num supermercado da rede Mercadona e confiscaram alimentos,
enchendo nove carrinhos e saindo sem pagar. Os alimentos foram entregues
aos necessitados. Esta ação do SAT ganhou as manchetes, escancarando a
discussão sobre se aqueles que não têm o que comer têm o direito de se
apropriar dos alimentos para poderem sobreviver, num país onde os
políticos fazem tantos absurdos, como uma lei que permite que pessoas
que recolhem comida no lixo possam ser multadas, como ocorreu
recentemente a um indigente. A ação do SAT recebeu também, além do
destaque, um processo judicial contra vários dos ativistas que
participaram do confisco de alimentos, chamado de roubo e até mesmo de
assalto pelas vozes patronais. Foi um eloquente aviso simbólico daquilo
que está por vir.
O cartaz do SAT convocava a militância para
iniciar a marcha (Andalucía en Pie – Marcha Obrera) no dia 16 de agosto,
às 9 horas, partindo de Jódar, passando por Bedmar, em direção à
Jimena, onde se realizaria uma assembleia. Depois seguiria para Mancha
Real, Pegalajar, completando a primeira etapa em Jaén, no dia 18,
sábado.
É de se perguntar, se, no escaldante verão espanhol,
haveria motivos suficientes para iniciar uma caminhada dessa natureza,
percorrendo centenas de quilômetros, ou se seria melhor ficar em casa,
com o ar condicionado ligado. Marchas desse tipo ocorreram
sistematicamente desde o início do sistema capitalista, não sendo,
portanto, nenhuma novidade histórica. Mas, que trabalhadores se
disponham a fazê-la, demonstra não a vontade de desfrutar o calor do
verão nas estradas andaluzas, mas a alta temperatura da crise social que
atravessa o país. É a dinâmica da luta social em curso que empurra
esses valorosos trabalhadores à heroica caminhada, enquanto nós, que
observamos, protestamos em meios como o Facebook ou Twitter, como bem
lembrou algum companheiro da Argentina.
Que os capitalistas paguem a crise! – Centenas
de pessoas responderam ao chamado do SAT e assim teve início, naquela
quinta-feira, dia 16, um dos mais importantes protestos da mobilização
contra Rajoy.
O SAT imaginava que a marcha teria a participação
de 150-200 pessoas, mas logo se verificou que cerca de 700 ativistas
participavam, que percorria as estradas com uma temperatura de 40 graus,
na sombra, como diziam, apelando para a solidariedade dos outros
trabalhadores para poderem comprar água e um pouco de comida.
Não
só operários, trabalhadores da colheita de azeitonas, estudantes,
desempregados, homens e mulheres, mas também artistas como Willy Toledo
uniram-se à marcha. Desde Jódar, uma pequena cidade que vive dos campos
de oliveiras, começava a ecoar o grito ouvido durante vários dias em
toda a Andaluzia: Contra o desemprego! Luta operária! Que os
capitalistas paguem a crise!
A marcha, segundo Gordillo, tinha
como objetivo mostrar a outra face da lua, a crise econômica, que afeta
milhões de trabalhadores, desempregados, que mantêm milhares de crianças
desnutridas.(…) As vítimas (da crise), já não aguentam mais!
Quando
os manifestantes chegaram à Mancha Real, foram recebidos como heróis
pela população. Lá, a marcha parou em frente à Unicaja e ao Banco
Santander, onde fizeram um protesto com todos sentados na rua, gritando:
“Mãos para cima, isto é um assalto!”, referindo-se ao roubo realizado
pelos bancos com o aval do governo. Momentos depois, os ânimos aqueciam e
começa um confronto com a polícia, chamada de “Filhos da p…”. Começam
a gritar a velha palavra-de-ordem “O povo unido jamais será vencido!”
Alguns ativistas entram na Unicaja, provocando um rebuliço momentâneo.
Na
última parte do trajeto, rumo a Jaén, dez carros da polícia escoltavam a
marcha para impedir que esta pudesse bloquear a auto-estrada. Em frente
ao Corte Inglês, uma muralha de polícias blindava o edifício, com
receio de que os manifestantes pudessem confiscar os seus produtos.
Passadas
algumas dezenas de quilômetros, os caminhantes estavam suados,
cansados, sem voz, depois de gritarem por todas as partes suas
reivindicações, a maior parte delas elementares, como o direito ao
trabalho, impossível de se conquistar numa sociedade capitalista. Muitos
dos que marcharam essa parte do roteiro eram diaristas, com mais de
cinquenta anos, que lutavam também em prol das gerações futuras. Alguns
desses caminharam até onde aguentaram, com os pés doloridos, feridos,
cheio de bolhas. Em Jaén, a marcha já tinha conquistado uma grande
vitória, que foi a de chamar a atenção de toda a opinião pública sobre a
atual crise. A crise é um “atraco” (assalto), como dizem eles.
Nesse
mesmo dia, Sánchez Gordillo e Diego Cañamero, secretário-geral do SAT,
participaram do popular programa de televisão “O grande debate”, onde
puderam explicar as suas posições e opiniões. No programa receberam
também toda a série de ataques dos jornalistas convidados, dos melhores
do país, como disse o apresentador, que certamente recebem bons salários
e, por isso mesmo, criticaram impiedosamente o confisco alimentar do
supermercado Mercadona. Somente o jornalista Ignacio Escolar defendeu a
atitude simbólica dos sindicalistas.
Ocupando o palácio de Moratalla – Na
manhã do dia 21, a marcha ocupava o Palácio de Moratalla, pertencente
ao Duque de Segorbe e Maria de la Glória de Orleans-Braganza, prima do
rei Juan Carlos. A marcha entrou por um vão próximo ao portão principal e
aproveitou a ocasião para denunciar e reivindicar o fim do latifúndio,
que é um dos principais problemas agrários da Andaluzia. Os
manifestantes gritavam: “Reforma agrária, agora!” Depois de ocupar por
uma noite o Palácio de Moratalla, pela manhã a marcha saiu em direção a
Posadas onde chegou ao redor do meio-dia. Durante o caminho, um dos
ativistas tocava uma gaita de foles, dando ânimo aos participantes que
caminhavam sob o sol abrasador. O povoado estava completamente tomado
pela Guarda Civil e o presidente da câmara da cidade, do Partido
Popular, tinha feito terrorismo, dizendo que a marcha iria ocupar o
comércio, o que fez os comerciantes locais fecharem as portas.
Chegaram
a Almodóvar às duas e meia, onde foram recebidos com um guisado de
arroz e puderam descansar. A população saiu para aplaudir os
manifestantes, contrastando com o forte dispsitivo policial
antidistúrbios montado. A marcha percorria as ruas: “Viva a luta da
classe operária!”
A solidariedade de Cádiz – Na manhã do
dia 27, começava a terceira etapa da marcha, desde El Puerto de Santa
María. Poucos metros depois de iniciada a marcha, os manifestantes
ocupam simbolicamente a agência da “La Caixa”. Apesar da ocupação
pacífica, a polícia interveio, desalojando violentamente os
manifestantes e prendendo onze deles. A polícia antidistúrbios agrediu
uma senhora idosa, provocando tensão.
Em Puerto Real, foram
recebidos por 5 mil moradores da cidade, superando todas as
expectativas, mesmo as mais otimistas. Nas palavras de Maricarmen
Garcia, do SAT, estava clara a importância do acolhimento: “Nesta praça,
reina esta noite a dignidade operária!” Em seguida, tomou a palavra
Lola Álvarez: “O vosso ânimo, o vosso apoio, o calor desta praça faz com
que esqueçamos o cansaço e sigamos adiante!”
De Puerto Real
seguiram para Cádiz, recebendo, no caminho, o abraço dos trabalhadores
da Navantia, que se uniram aos manifestantes. Minutos depois, fizeram um
protesto, sentando-se na Puente de Carranza, recordando desta maneira a
luta dos estaleiros, que muitas vezes interrompeu esse local nos seus
protestos. Após atravessar a ponte, o cortejo foi engrossado pela
Autonomia Obrera e Ustea, que manifestavam a sua solidariedade. Em
Cádiz, milhares de pessoas aguardavam a marcha, sindicatos, organizações
de esquerda e movimentos sociais. Juntando-se numa grande manifestação
que tomava a principal artéria da cidade.
Milhares em Granada – No
dia 30 pela manhã, a marcha saia de Maracena passando por Atarfe,
Albolote, para pernoitar em Peligros. Como ocorrera desde o início, a
reação da população foi calorosa. Em Peligros, centenas de moradores
incorporaram a marcha, participando da manifestação de protesto na
cidade. Cerca de 3 mil pessoas aglomeraram-se no Anfiteatro de Peligros
para ouvir os discursos de Sánchez Gordillo e Diego Cañamero. Cañamero
frisou: “Quando o desemprego bate à sua porta, não pergunta de qual
partido você é, o desemprego chega para ficar e destrói a sua vida. É
preciso rebelar-se! Esta sociedade não pode suportar seis milhões de
desempregados. É preciso colocar a economia a serviço das pessoas e não
do mercado!”.
Em Granada, a marcha fez uma ocupação simbólica da
rede Zara, propriedade de Amancio Ortega, o empresário mais rico do
Estado Espanhol e o 3º mais rico do mundo, segundo a avaliação recente
da Bloomberg. Um forte dispositivo policial escoltava a marcha, e
policiais fardados filmavam a manifestação. No bairro de Zaidín, por
onde passou, centenas de moradores aderiram, seguindo para o centro,
percorrendo as principais ruas, onde terminou com uma grande
manifestação de 10 mil pessoas.
Marchando sobre Málaga – A
quinta etapa da marcha foi proibida pelo governo, mas, mesmo assim
seguiu em frente. Ocuparam simbolicamente uma agência do Banesto,
denunciando a responsabilidade dos banqueiros na atual crise. Doze
participantes foram detidos e logo colocados em liberdade. A marcha
tinha partido de Fuente de La Reina e terminou na Plaza de la
Constitución. Gordillo ressaltou: “O povo de Málaga disse claramente que
está com a marcha, que está com a utopia, por um mundo melhor, por
outra Andaluzia, por outra política económica e por um ser humano
novo!”.
Rumo a Sevilha – Depois de cerca de duzentos
quilómetros a marcha parte para Sevilha, na sua última etapa. Sai de
Utrera com mais de mil participantes rumo a Los Palacios. Os
manifestantes ocuparam a agência do BBVA de Utrera. Dois helicópteros,
cerca de trinta furgões da polícia e mais de cem soldados da guarda
civil escoltavam-na. Uma companhia desnecessária, inútil e cara, segundo
os sindicalistas. Um desperdício de dinheiro com o objetivo não de
proteger os manifestantes, mas de proteger os bancos e latifúndios, como
se viu em La Romana.
Em Los Palacios, a marcha fez outro protesto, sentando-se em frente à La Caixa.
Em
Dos Hermanas, os manifestantes ocuparam o supermercado Lidl, de capital
alemão, em protesto contra a visita de Angela Merkel à Espanha que,
segundo Cañamero, veio a Espanha para exigir os cortes, que beneficiam
os banqueiros alemães.
Uma grande maré humana, um grande rio de dignidade e luta em Sevilha – A
marcha que começara em Jódar, no dia 16 de agosto, com algumas centenas
de ativistas, terminou em Sevilha, depois de percorrer cerca de 300
quilómetros, em 23 dias, com a participação de cerca de 15 mil pessoas.
Vinham de Bellavista e durante o trajeto, nas proximidades do estádio
Benito Villamarín, encontraram-se com a multidão que os esperava. A
marcha se transformara em impressionante manifestação que ocupava toda a
Avenida de La Palmera, dirigindo-se à Plaza de España, sede do governo,
onde foi realizado o comício final de encerramento do protesto.
Durante
o trajeto tremulavam as bandeiras verdes do SAT, com uma faixa branca
no meio e SAT escrito em vermelho, no centro. Tremulavam também dezenas
de bandeiras vermelhas e negras dos anarquistas da CGT, algumas do PCE,
da Esquerda Unida e também um pequeno grupo de trotskistas da Esquerda
Anticapitalista e da Corrente Vermelha, assim como as bandeiras
tricolores dos republicanos.
Nesse local ecoavam os gritos: Reforma Agrária, Já!; Temos a solução, banqueiros na prisão! Contra os cortes, Greve Geral!
Diego
Cañamero afirmou que a grande surpresa do dia não foi nenhuma ocupação
de supermercado ou banco, “a autêntica surpresa de hoje foi o
acolhimento e receção desta cidade!”. Em Sevilha, demonstrou-se que a
marcha conquistara os corações dos operários andaluzes, com o seu
heroísmo e combatividade, e que novas grandes lutas se preparam.
Cañamero
deixou claro que o SAT continuará a “ocupar palácios, terras e bancos” e
concluiu: “Isto é só o começo, não conseguirão parar-nos!”