Novo Código Penal reduz interferência do Estado na vida privada

No final de junho, a Comissão Especial de Juristas formada para elaborar
o projeto de reforma do Código Penal enviou ao Senado a conclusão de
seus debates. Depois de sete meses de trabalho, a realização de diversas
audiências públicas e a análise de mais de seis mil sugestões enviadas
pela sociedade civil ao longo do processo, o texto do anteprojeto será
entregue agora a um grupo de trabalho do Congresso, que deve garantir
celeridade ao exame da proposta.

A tramitação do novo Código
Penal, no entanto, não deve ser tranquila. Há polêmicas em torno dos
mais diferentes aspectos do texto, que, além de atualizar trechos
totalmente ultrapassados do Código em vigor – que data dos anos 40 -,
também incorpora uma série de leis sobre Justiça penal, que foram
promulgadas de forma autônoma ao longo das últimas décadas, e cria novos
tipos penais, como o bullying , o terrorismo e o enriquecimento
ilícito.

Parte das críticas veio de bancadas conservadoras do
Senado, como a evangélica, e de setores que consideram a proposta do
novo Código excessivamente liberal, sobretudo por conta da nova
abordagem para o uso de drogras e para a prática do aborto. A proposta
da Comissão de Juristas reduz a punição para usuários de droga e
autoriza a interrupção da gravidez em novas situações. Mas, nNa
avaliação de organizações de defesa dos direitos humanos, estes são
justamente os maiores avanços da mudança proposta.

“Em questões
como drogas, aborto e eutanásia, o anteprojeto caminha num sentido de
reduzir a interferência do Estado e do direito penal na vida privada do
cidadão, e isso é um avanço. São temas que precisam ser debatidos sem
dogmas, afinal, vivemos num Estado laico. Argumentos religiosos não
deveriam ser considerados na definição de políticas públicas”, acredita
Rafael Custódio, Coordenador do Programa de Justiça da Conectas Direitos
Humanos.

Outro aspecto destacadado por Custódio é que a atual
Lei de Drogas, por exemplo, tem punido sobretudo a população mais pobre.
Pesquisas mostram que o perfil daqueles que são presos pelo uso de
entorpecentes são jovens, negros e pobres, que vivem em geral nas
periferias dos grandes centros. Enquanto isso, as classes média e alta
continuam consumindo drogas sem punição.

“Diminuir o foco hoje
dado ao usuário, apesar de não resolver completamente o problema, é algo
que deve ser apoiado. Países como Portugal, Espanha e Argentina já
avançaram na questão da descriminalização do uso de drogas e não
constataram crescimento da demanda e do tráfico. Pelo contrário, tem
colhido resultados positivos no âmbito do consumo. Mas o simples fato de
uma sociedade tão conservadora como a nossa levar essa dicussão para o
Congresso já é um avanço. E o importante agora é que essa discussão não
seja feita de forma maniqueísta pelo Parlamento; que se trabalhe com
números, pesquisas e argumentos com substâncias; que o debate seja
plural”, afirmou.

Descriminalização do aborto e dignidade sexual

No
capítulo de crimes contra a vida, o anteprojeto do Código Penal permite
a interrupção da gravidez em novas situações: quanto tiver havido
emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; quando o feto
sofrer de anencefalia ou graves e incuráveis anomalias; em caso de
risco à saúde da mãe e, até a 12ª semana de gestação, quando for
constatado que a mulher não apresenta condições físicas ou psicológicas
de manter a gravidez.

Além de permitir a interrupção da gestação
em novos casos, a proposta de novo Código Penal também avança ao deixar
de considerar a o aborto como crime, quando praticado dentro destes
contextos. Atualmente, a legislação apenas exclui a punibilidade da
mulher em casos de estupro e risco de morte da gestante. A conduta, no
entanto continua sendo ilícita. Pelo novo texto, o aborto, nessas
situações, deixa de ser crime.

“Pode parecer uma mudança
retórica, mas excluir o aborto do rol de crimes, mesmo que somente
nessas situações, é um avanço importante, que muda o cenário da
discussão pública sobre o tema”, acredita a advogada Tamara Gonçalves,
co-coordenadora do CLADEM-Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos da Mulher).

“A proposta também amplia o
aborto legal para casos de risco à saúde da gestante. Antes era somente
em caso de risco à vida, se a mulher fosse morrer. Da mesma forma, a
inclusão dos casos de emprego não consentido de técnicas de reprodução
assistida dialoga com a perspectiva de autonomia sexual e reprodutiva da
mulher. Todas essas mudanças são muito importantes”, afirma Tamara
Gonçalves.

Para as feministas, a proposta da Comissão de Juristas
ainda não é a ideal porque não traz a autonomia da mulher como
princípio. Em países que legalizaram o aborto – geralmente tendo como
prazo a 12a semana de gestação – a interrupção da gravidez é decidida
pela mulher, como um exercício da sua autonomia sexual e da sua
liberdade de escolha. Pelo texto do novo Código, a mulher ainda
dependerá da autorização de terceiros para saber se vai ou não ser mãe, e
o resultado final dependerá da sua condição de continuar ou não a
gravidez – e não de sua vontade.

“Queríamos poder avançar mais
neste sentido. Mas no contexto desta onda conservadora e de um
fundamentalismo crescente que vivemos no Brasil, com impactos inclusive
em documentos como a declaração final da Rio+20, que retirou a afirmação
dos direitos reprodutivos das mulheres, garantir a descriminalização do
aborto nesses novos casos é fundamental”, alerta Tamara.

Grupos
religiosos já se posicionaram radicalmente contra tais provisões da
Comissão de Juristas. Em 2013, o Brasil receberá a visita do Papa Bento
XVI, o que pode aumentar a pressão sobre o Congresso. “Se não
conseguirmos garantir isso agora, vamos ter que esperar mais 100 anos,
até a próxima reforma do Código Penal”, acredita Tamara.

Ainda
dentro das mudanças consideradas positivas pelo movimento feminista está
o capítulo dos chamados crimes sexuais. O Código Penal de 1940, em
vigor, determina “categorias de mulheres” que podem sofrer crimes
sexuais. O texto da lei fala de “mulher honesta”, excluindo outras, com
base em sua conduta moral, da possibilidade de serem vítimas. Em 2009, a
Lei 12015 mudou a expressão “crimes contra os costumes” para “crimes
contra a dignidade sexual”. Por outro lado, juntou num único tipo penal
os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, dificultando a
aplicação das penas.

A nova proposta considera crime
“constranger alguém à pratica de sexo vaginal, anal e oral” e fala em
“estupro, manipulação e introdução de objetos e molestamento sexual”. A
mudança, além de aumentar o alcance do estupro, protegendo também
homens, cria uma maior gama de condutas previstas, o que permite uma
gradação nos crimes, facilitando a possibilidade de punir a violência.

Sem mudança de paradigmas

Apesar
de propor alterações importantes na relação entre o Estado e a vida
privada dos cidadãos, o anteprojeto do Código Penal mantem sua estrutura
baseada na política de aprisionamento em vigor no país. Na avaliação de
organizações de defesa dos direitos humanos, a Comissão de Juristas
optou por criar novos crimes e aumentar a punição para outros em vez de
buscar alternativas além da retrição da liberdade daqueles que entrarem
em conflito com a lei.

O novo Código aumenta, por exemplo, as
penas para homicídio culposo de três para oito anos. Também propõe punir
de maneira mais rigorosa aqueles que utilizam adolescentes ou até
crianças na prática de crimes. Para os defensores de direitos humanos, o
fato de aumentar penas e tipificar condutas traz uma sensação de
segurança, mas não é por si só uma medida eficaz de combate à
criminalidade.

“O texto do Código sitema tiza e dá mais
coerência a uma série de projetos e leis penais dispersas, mas não há
uma mudança paradigmática em termos de Justiça penal. Não conseguimos
superar a prisão como única resposta da sociedade a todos os conflitos.
Assim, vamos continuar sem enfrentar os grandes problemas da Justiça
criminal do Brasil”, critica José de Jesus Filho, assessor jurídico da
Pastoral Carcerária. “Não é a duração da pena que tem efeito
dissuasório; é a certeza da punição. Pessoas continuam praticando crimes
porque sabem que não serão punidas. E nós não aperfeiçoamos o sistema
de Justiça para garantir isso. Não punimos pouco; punimos mal. Este é o
maior problema. A criminalidade cai quando o sistema é eficiente e a
pessoa sabe que a chance de ser responsabilizada é alta”, explica.

Segundo
a Pastoral Carcerária, a cada 10% de aumento da população prisional, o
máximo de redução na criminalidade é de 4%. Em crimes como homicídio e
tráfico de drogas, o efeito é praticamente zero. Medidas como uma maior
celeridade na Justiça criminal e melhor aparelhamento das polícias, por
exemplo, surtiriam melhores resultados. Outro problema é o custo do alto
encarceramento. Países como os Estados Unidos já estão reduzindo sua
população prisional por conta deste fator.

“É preciso então
encontrar respostas adequadas para cada conflito. E há alternativas em
curso, como práticas restaurativas, prestação de serviço à comunidade, a
própria conquista de empregos etc. Mas a reforma do Código Penal não
parte deste princípio, pelo contrário. Continua usando a prisão como
saíde e é punitivista. Basta olhar a quem o novo texto é dedicado: a
duas crianças que morreram de forma cruel, o que todos lamentamos, mas
que inspiraram mudanças autoritárias na lei penal. Não podemos fazer uma
proposta de Código Penal com base em casos isolados. Proposta que
restringem a liberdade das pessoas deveriam ser feitas com amplo debate
da sociedade”, conclui José Luiz Filho.

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