O mercado das empresas de segurança privada, à semelhança do que ocorreu na Copa da África do Sul, em 2010, provavelmente se consolidará definitivamente por aqui. Uma legislação de exceção, a Lei Geral da Copa tende a contribuir substancialmente para isso. Mas, se por um lado as empresas do setor lucrarão com o evento, a sociedade poderá vivenciar um estado de sítio, levado a cabo tanto por agentes públicos quanto particulares.
De acordo com o texto enviado à Câmara dos Deputados, não se estabelecerão limites para os contratos com o setor na Copa de 2014. “O Joseph Blatter (presidente da Federação Internacional de Futebol, a Fifa) trará ao Brasil a consolidação do poder dessas milícias por meio desse modelo neoliberal tardio, trazido pela entidade”, afirma Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado de São Paulo (Condepe) e ex-preso político.
Segundo Antônio Jorge Ferreira Melo, coronel da reserva da Polícia Militar da Bahia, a Lei Geral da Copa, que poderá ser votada ainda neste ano, atribui ao organizador de eventos a responsabilidade pela segurança interna nos estádios e praças de show, mas não imuniza o Estado e, consequentemente, o contribuinte, de assumir corresponsabilidades, sem a devida contraprestação financeira. Antônio é professor e pesquisador do Progesp (Programa de Estudos, Pesquisas e Formação em Políticas e Gestão de Segurança Pública) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Divisão de tarefas – É o modelo que a entidade impôs na Alemanha, na África do Sul e, agora, o faz no Brasil. Nos “jogos-Fifa”, a Polícia Militar cuida da parte externa e os vigilantes da segurança interna. Os últimos se responsabilizam pelo estacionamento interno dos estádios, bilheteria, catracas, torcidas e isolamento do campo de futebol. Mas prevê-se que grupos da PM atuem em casos de intensa perturbação da ordem dentro das arenas.
Já houve experiências com esse modelo no Brasil. Num amistoso da seleção brasileira contra a Holanda, em Goiânia (GO), a empresa espanhola Prosegur realizou a segurança interna e já está se especializando em grandes eventos. Já a brasileira Gocil se encarregou do serviço no jogo entre Brasil e Romênia. Como salienta Ivan Seixas, tal modelo tende a “seduzir” o torcedor, considerando que ele se sentirá seguro “sem a opressão de uma farda”.
A realização da Copa do Mundo na África do Sul, entretanto, mostrou que o raio de ação desse setor extrapolou os limites dos estádios de futebol. Turistas e organizadores do torneio buscaram esquemas próprios de proteção. Segundo agências de notícias internacionais, a soma dos agentes de segurança privada compôs um número quase dez vezes maior do que o de policiais sul-africanos oficialmente encarregados da segurança do país. Enquanto a polícia da África do Sul possuía 44 mil policiais a seu serviço, a associação sul-africana Aliança da Indústria da Segurança disse ter empregado formalmente 395 mil pessoas em 2010.
Consolidação – Por aqui, o caminho é feito do mesmo ladrilho, enveredando para o horizonte dos empresários do setor, que não estão dormindo no ponto. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) promoveu, em 12 de setembro, na sede da entidade, um debate sobre segurança na Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016. A discussão entre empresários, políticos e militares girou em torno de temas como gestão, tecnologia, legislação e integração das providências nas cidades-sedes da Copa.
Qual será o raio de ação da segurança privada após os grandes eventos esportivos no Brasil? “A questão será se [a partir da Copa do Mundo] for definido que qualquer tipo de espetáculo, seja esportivo ou artístico, patrocinado por particulares, terá que utilizar a segurança privada, seja qual for o tamanho do evento”, pondera o coronel da reserva da Polícia Militar da Bahia, Antônio Jorge Ferreira Melo.
Segundo ele, para mostrar-se seguro, o Brasil precisa se adequar às “forças do mercado”, atualmente globais – portanto, extraterritoriais –, que verdadeiramente exercerão a governança da grande festa do futebol mundial. Ao Estado, caberá apenas dar-se por satisfeito em garantir a infraestrutura, os meios e os serviços indispensáveis à realização dos jogos e assistir, de camarote, como convidado de honra, aos donos do capital mandarem e desmandarem nos gramados.
Antônio teme ainda que o projeto de lei que cria o novo Estatuto da Segurança Privada, em tramitação na Câmara dos Deputados, possa representar uma radicalização na mercantilização de serviços de segurança em nosso país. O parágrafo 5º do artigo 2º do estatuto, por exemplo, determina que “a segurança privada em estádios e outros locais fechados de eventos, sob a responsabilidade da pessoa física ou jurídica promotora do evento, será obrigatória”. O ex-policial acrescenta que “o processo de privatização da segurança é mundial, não é específico no Brasil nem em relação à questão da Copa do Mundo”.
O Brasil, além de ter de se adaptar a uma legislação de exceção, ainda permitirá a participação de capital internacional nas empresas de segurança, “porque geralmente as empresas que fazem segurança na Copa do Mundo são corporações, não são empresas nacionais”, pontua Antônio.
Exceção – Além da privatização da segurança se consolidar no país, a sociedade será obrigada a enfrentar novos desafios. “Esses eventos, tradicionalmente, permitem a criação de um estado de sítio. Deve-se colocar em discussão que com essa segurança particular, controlada por torturadores, policiais corruptos, policiais da ativa, há uma situação de privatização da segurança como um modelo. Devemos defender o modelo de segurança feito pelo Estado e não pelo particular”, defende Ivan Seixas, presidente do Condepe.
Em entrevista ao Congresso em Foco, o promotor público Maurício Antônio Ribeiro Lopes, do Plano Integrado de Atuação do Futebol do Ministério Público de São Paulo, afirmou que a futura Lei Geral da Copa do Mundo vai signifi car a submissão do Brasil aos interesses da Fifa, além de instituir um estado de exceção. “É um momento em que uma série de garantias hoje constitucionais deixarão de ter vigência”, ponderou.
E atestou ainda que possui sérias restrições a substituir o policiamento público oficial por uma milícia privada. “Não há possibilidade alguma de uma revista feita por um particular. Isso é algo inadmissível no nosso sistema. Nós não temos no Brasil uma empresa que tenha experiência em realização de segurança em grandes eventos como tem a Polícia Militar aqui em São Paulo, por exemplo. É uma atuação típica de Estado, e não de particular, o policiamento preventivo”, afirmou o promotor na entrevista.
Na mesma linha, Marcelo Braga Edmundo, coordenador da Central de Movimentos Populares e do Comitê Social da Copa 2014 e dos Jogos Olímpicos, salienta que, por enquanto, as organizações populares questionam a realização da Copa pelo viés das remoções; mas, com a aproximação do evento, as questões da repressão aos trabalhadores e moradores de rua e do controle do espaço urbano também precisam ser levadas em conta.
“Isso tem sido cada vez mais efetivado. Aumentou o número de carros (de empresas de segurança) nas ruas e a presença de equipamentos que visam espionar os trabalhadores”, pondera Braga. De acordo com ele, com crises ou grandes eventos cria-se o clima ideal para que mesmo os seguranças privados exacerbam suas funções. O grande medo, de acordo com ele, é que esses acordos e decretos continuem depois e qual modelo eles nos deixarão.
O Brasil de Fato entrou em contato com as empresas de segurança privada Gocil e Prosegur para que elas comentassem o tema, mas não obteve resposta.