“De repente a menina cansava sem
ninguém sabe como. Tinha que pegar e levar pro hospital às
pressas”, relembra Madalena. A cena se repetia todos os dias. Sua
sobrinha, à época com quatro anos, tinha crises respiratórias a
cada fim de tarde e era socorrida no hospital de São Lourenço da
Mata, zona da mata norte de Pernambuco. “Foi então que a médica
descobriu que os ataques só aconteciam quando meu irmão chegava em
casa do trabalho. Ela pediu pra ele se afastar do serviço por algum
tempo. Passou um mês e a menina não teve mais nada, quando ele
voltou a trabalhar os ataques voltaram”. O irmão de Madalena
aplicava agrotóxicos nos canaviais da usina Petribu.
Os ataques de asma que a sobrinha de Madalena
sofria eram causados pelos vestígios de agrotóxico que permaneciam
no corpo de seu irmão, “muito embora”, ressalta Madalena,
“quando largava do trabalho, ele tomava banho na usina e trocava de
roupa antes de ir pra casa”.
O relato de Madalena é reforçado por outras
esposas e mães da região, cujos nomes verdadeiros foram preservados
para evitar retaliações da usina. “O fedor é muito forte”,
lembra Regina, cujo esposo de 30 anos aplica veneno nos canaviais da
Petribu pela segunda safra consecutiva. “Quando ele chega do
serviço, só entra pela porta de trás. A roupa que ele usa pra ir e
voltar do trabalho tem que deixar na porta da casa. Boto na água
sanitária e nada do cheiro sair. Tem dia que o fedor é tão forte
que não consigo nem ficar perto dele”, completa.
Regina revela que seu esposo já foi parar no
hospital municipal depois de passar mal e desmaiar durante a
aplicação dos agrotóxicos. “Ele tomou soro e foi liberado. O
médico não disse nada sobre o veneno e não passou nenhuma
medicação. Até hoje tem dia que ele acorda no meio da noite com o
corpo cheio de câimbra.”
Cachaça como remédio – A
denúncia mais grave é feita por Rosângela. Há três anos seu
marido aplica veneno nos canaviais da Petribu. Segundo ela, desde o
ano passado, os médicos da usina determinaram que todos os
trabalhadores que manuseassem os agrotóxicos “tomassem uma dose de
cachaça por dia, depois de terminado o serviço. Eles disseram que
era pra cortar o efeito do veneno no corpo.”
Madalena confirma a acusação: “Na safra
passada, eles chamaram meu filho de 19 anos pra trabalhar com veneno.
O salário era um pouco maior, mas tinha um porém. Antes eles davam
um saquinho de leite pra cada funcionário. Mas agora eles não
estavam mais fornecendo leite e sim uma dose de pinga. Quando ele
saísse do serviço, ia pra usina, tomava banho, trocava de roupa e
recebia uma dose de pinga que era pra poder fazer uma limpeza dentro
dele para o veneno não ofender ele”. Seu filho se recusou a beber
e acabou desempregado.
“Não tem efeito nenhum do ponto de vista de
evitar, de prevenir ou de tratar a questão da intoxicação pelo
veneno utilizado na agricultura” esclarece a médica Lia Giraldo
sobre os efeitos do leite e do álcool na lida com os agrotóxicos.
Professora da UPE (Universidade do Estado de Pernambuco) e
pesquisadora titular da Fiocruz/PE, Lia ressalta que “o leite é um
alimento e, obviamente, não tem nenhuma consequência desfavorável
tomá-lo, mas também não serve para nada do ponto de vista da
intoxicação. Com relação ao álcool [cachaça] sim, é muito
perigoso. Porque o álcool tem efeito tóxico para o fígado e para o
sistema nervoso, assim como a maioria dos agrotóxicos. Então você
tem a superposição de dois produtos que são tóxicos, causando uma
potencialização do efeito negativo do veneno sobre a saúde humana.
Quem receitar esse tipo de coisa para evitar intoxicação,
especialmente se for médico, está cometendo um crime e deve ser
encaminhada uma denúncia ao Conselho Regional de Medicina”,
enfatizou.
A pesquisadora lembra que o uso do álcool pode
descaracterizar a intoxicação química por agrotóxicos, já que
ambos produzem sintomas parecidos, tornando muito difícil a
realização de um diagnóstico diferencial. “Na hora de fazer o
diagnóstico vão dizer que o problema do trabalhador é porque ele
bebe e não porque ele está exposto ao agrotóxico”, conclui Lia.
No ar, na terra e nas águas – Não
são só os trabalhadores que sofrem com o uso indiscriminado dos
agrotóxicos nos canaviais pernambucanos. Os 522 alunos da Escola
Municipal Luiz Carlos de Moraes Pinho, localizada no distrito de Chã
de Sapé em Itaquitinga, assistem suas aulas a poucos metros dos
canaviais da Usina Santa Tereza. De acordo com Ivone, diretora da
escola, “quando eles queimam as canas, a escola tem que liberar os
alunos e suspender as aulas”. A professora de informática Ivete
lembra que “há três anos, a Fusam [Fundação de Saúde Amaury de
Medeiros] veio aqui fazer exame de vista nas crianças. Muitas
crianças foram diagnosticadas com tracoma [uma forma de conjuntivite
crônica que pode levar a cegueira] e os médicos associaram ao
veneno que se espalhava com as queimadas da cana. Na época, a
prefeitura foi acionada, mas até hoje nada foi feito”.
A agente de saúde lvanusa da Silva lembra que as
famílias tinham o costume de cultivar algumas lavouras brancas para
alimentação, como o mamão, “mas com o veneno despejado pelos
aviões da usina, o mamão ficava todo amarelado, não conseguia
sobreviver. Não podemos plantar nada porque afeta”. Ivanusa
informa que os aviões passam todos os finais de semana, logo cedo,
despejando veneno nas canas e nas casas, indiscriminadamente. “Passa
tão perto que parece que vai rasgar o teto em cima das casas”,
completa a agente de saúde.
Em um desses voos rasantes, Dona Nelinha, 60 anos,
acabou recebendo um banho de veneno. “Estava caminhando ali na
estrada, de manhã cedinho, umas 5h. Só ouvi o barulho e quando vi o
produto foi despejado do avião e salpicou veneno nos meus braços e
no meu rosto. Eu acredito que isso não aconteceu só comigo, porque
na estrada passa muita gente pra lavar roupa, o pessoal que chega do
trabalho, todo mundo passa por essa estrada. É um produto que não
faz bem pra nossa saúde, não é? Isso não faz bem pra comunidade”,
afirma a moradora aposentada.
Para completar o quadro, a Associação de
Moradores de Chã de Sapé denuncia que o poço responsável por
armazenar a água que abastece os cerca de 800 domicílios do
distrito está contaminado pelos agrotóxicos utilizados nos
canaviais.
Agrotóxicos, abortos e câncer – Os
casos denunciados pelos moradores de São Lourenço da Mata e
Itaquitinga se repetem por diversos municípios tomados pelas
plantações de cana na região. Mas, de acordo com os estudos
levados adiante pela professora Lia Giraldo e a Fiocruz, há outras
culturas em que os agrotóxicos também estão causando sérios danos
à população e ao meio ambiente.
De acordo com Lia Giraldo, pesquisas realizadas
com as mulheres envolvidas diretamente na produção de tomate no
município de Camucim de São Félix, agreste pernambucano,
constataram que 70% delas haviam abortado e 11% tiveram fi lhos com
deficiências físicas ou distúrbios neurocomportamentais.
Levantamento feito no ano de 2009 pela Embrapa (Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária) evidenciou a contaminação ambiental de
cacimbas e açudes pelo agrotóxico metamidofós, cuja classe
toxicológica é a de nível I: extremamente tóxico. Além disso,
estudos da Fiocruz identificaram na região do Vale do São Francisco
108 agrotóxicos diferentes utilizados na fruticultura com forte
potencial de indução de câncer. 87% destes agrotóxicos foram
classificados como carcinogênicos e 7% pré-carcinogênicos.
Lia Giraldo lembra que o consumo de agrotóxicos
só aumenta em Pernambuco e em todo o país. Em 2009, haviam 2.195
produtos agrotóxicos registrados no país e as vendas chegaram a
789.794 toneladas, o equivalente a 6,8 bilhões de dólares. Em 2010,
essa cifra alcançou os US$ 7,1 bilhões. Para a professora, o uso
indiscriminado de agrotóxicos representa um “grave problema para a
saúde pública, ainda que seus riscos e efeitos sejam ocultados e
invisibilizados pela propaganda, pela ausência efetiva de controle
dos órgãos públicos e pela falta de informação dos
consumidores”.