Quem desembarcasse no Brasil nos últimos dias e não soubesse nada de
nossa história, certamente começaria a assimilar a idéia de que não
houve ditadura. Que ela não matou, não seqüestrou, não torturou
barbaramente homens, mulheres, crianças, religiosos, religiosas. Que não
empalou pessoas, que não fez desaparecer seres humanos, que não cortou
cabeças, que não queimou corpos. Que não cultivou o pau de arara, o
choque elétrico, o afogamento, a cadeira do dragão, que não patrocinou
monstros como Carlos Alberto Brilhante Ustra ou Sérgio Paranhos Fleury. O
artigo é de Emiliano José.
Fico pensando no que foi o nazismo. No Tribunal de Nuremberg. Na
justiça que se procurou fazer diante daquele genocídio. Julgou-se os
assassinos, e ponto. Não os que a ele resistiram. E só o faço como
alusão à situação brasileira.
Fico pensando na decisão argentina de abrir todos os arquivos
confidenciais das Forças Armadas referentes ao período da ditadura
militar, ocorrida entre 1976-1983. Essa abertura foi feita para
subsidiar a apuração de violações aos direitos humanos durante aquele
período.
E penso novamente no Brasil, no barulho que se está fazendo diante da
possibilidade da criação da Comissão Nacional da Verdade, que já
aconteceu na maioria dos países da América Latina que viveram também a
tenebrosa experiência de ditaduras. Nesses países encara-se com
naturalidade que criminosos, torturadores, assassinos sejam julgados, e
muitos deles foram julgados, condenados e presos.
Quem desembarcasse no Brasil nos últimos dias e não soubesse nada de
nossa história, certamente começaria a assimilar a idéia de que não
houve ditadura. Que ela não matou, não seqüestrou, não torturou
barbaramente homens, mulheres, crianças, religiosos, religiosas. Que não
empalou pessoas, que não fez desaparecer seres humanos, que não cortou
cabeças, que não queimou corpos. Que não cultivou o pau de arara, o
choque elétrico, o afogamento, a cadeira do dragão, que não patrocinou
monstros como Carlos Alberto Brilhante Ustra ou Sérgio Paranhos Fleury,
este morto, o primeiro ainda exibindo sua arrogância, cinismo e ainda
certeza da impunidade.
De repente, se não insistirmos na luta para afirmar a verdade da
história, gente do nosso povo pode até acreditar na versão que querem
passar de que houve apenas uma luta entre um regime legal e os que a ele
se opunham.
É falso, mentiroso dizer que a Comissão Nacional da Verdade que se
pretende implantar queira eliminar a Lei de Anistia. Ela pretende, se
instalada, apurar todas as violações de direitos humanos ocorridas no
âmbito da repressão política durante os 21 anos de ditadura.
É a forma de legalmente desencadear o processo histórico, político,
ético,
criminal, como disse o ministro Vannuchi, de todos os
episódios de tortura, assassinatos e desaparecimentos de opositores
políticos registrados naquele período.
O que se sustenta, aqui e em todo o mundo democrático, é que a
tortura é crime imprescritível, e que esse crime não pode permanecer
impune. Não é à toa que o ex-ditador Pinochet, um assassino, foi detido
em Londres e depois julgado em seu país.
Não se queira fazer acreditar que a Comissão Nacional da Verdade
pretenda desmoralizar as Forças Armadas. Ao contrário. Pretende-se que
quaisquer que sejam os cidadãos que tenham cometido o crime da tortura
ou que tenham assassinado pessoas por razões políticas ou tenham feito
com que desaparecessem sejam julgados por seus crimes de
lesa-humanidade.
E julgamento é atribuição do Judiciário, com sua soberania e com os
ritos próprios da democracia. Diz-se isso para que se diferencie dos
mais de 20 anos da ditadura, onde não havia qualquer legalidade. Muitos
dos nossos companheiros não chegaram a ser julgados: foram mortos de
forma covarde, insista-se na palavra, covarde, na tortura brutal, cruel,
e os registros históricos são vastíssimos. Não cabem neste artigo.
Assistam o filme Cidadão Boilensen. É interessante como registro da
associação corrupta entre grupos empresariais e a Operação Bandeirante,
entre o aparato repressivo e as finanças, entre a ditadura e o grande
negócio. Puro banditismo, acobertado pelo silêncio imposto à época. E
para compreender, também, parte, apenas parte, da impressionante
crueldade desse aparato.
Não sei como se movimentará a sociedade brasileira nesse caso. Sei
que mais de 10 mil cidadãos assinaram um manifesto, inclusive eu,
defendendo que os envolvidos em crimes de tortura em nome do Estado
brasileiro devem ser julgados e punidos pelos seus atos.
Estamos defendendo a civilização, a humanidade, a democracia. Não dá
para acobertar crimes como o da tortura ou assassinatos e
desaparecimentos de opositores políticos. Esta é a posição de quem não
esquece o terrorismo da ditadura. A posição de quem defende
intransigentemente a democracia. E que grita: ditadura, nunca mais!