Sendo o Datafolha propriedade de um dos grandes jornais do Brasil e este
um dos afiliados da ANJ, como deveríamos fazer a leitura correta das
pesquisas de opinião por ele trabalhadas? O Datafolha estaria também a
serviço de uma oposição “que no Brasil se encontra fragilizada”?
Washington
Araújo
Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa:
Esperei
baixar a poeira. Em vão, porque a poeira existiu apenas na internet. E
tudo porque me causou estranheza ler no diário carioca O Globo
(18/3/2010) a seguinte declaração de Maria Judith Brito, presidente da
Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha de
S.Paulo:
“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser
limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da
responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de
comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já
que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de
oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o
governo.”
E como a poeira não baixou resolvi colocar no papel as
questões que foram se multiplicando, igual praga de gafanhotos,
plantação de cogumelos, irrupção de brotoejas. Ei-las:
1. É
função da Associação Nacional de Jornais, além de representar legalmente
os jornais, fazer o papel de oposição política no Brasil?
2. É
de sua expertise mensurar o grau de força ou de fraqueza dos partidos de
oposição ao governo?
3. Expirou aquela visão antiquada que
tínhamos do jornalismo como sendo o de buscar a verdade, a informação
legítima, para depois reportar com a maior fidelidade possível todos os
assuntos que interessam à sociedade?
4. Como conciliar aquela
função antiquada, própria dos que desejam fazer o bom jornalismo no
Brasil, como tentei descrever na questão anterior, com a atuação
político-partidária, servindo como porta-voz dos partidos de oposição?
5.
Sendo o Datafolha propriedade de um dos grandes jornais do Brasil e
este um dos afiliados da ANJ, como deveríamos fazer a leitura correta
das pesquisas de opinião por ele trabalhadas? O Datafolha estaria também
a serviço de uma oposição “que no Brasil se encontra fragilizada”?
6.
Na condição de presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) será
que Maria Judith Brito não se excedeu para muito além de suas
responsabilidades institucionais?
7. Ou será próprio de quem
brande o estatuto da liberdade de imprensa que entidade de classe de
veículos de comunicação assuma o papel de oposição política no saudável
debate entre governo e oposição?
8. Historicamente, sempre que um
dirigente ou líder de partido político de oposição desanca o governo,
seja justa ou injustamente, é natural que o governo responda à altura e
na mesma intensidade com que o ataque foi desferido. Mas, no caso atual,
em que a ANJ toma si para a missão de atuar como partido político de
oposição, não seria de todo natural esperar que o governo reaja à altura
do ataque recebido?
9. E, neste caso, como deveria ser encarada a
reação do governo? Seria vista como ataque à liberdade de expressão? Ou
seria considerado como legítima defesa de da liberdade de expressão ou
de ideologia?
Claro e transparente
10. Durante o período
de 1989 a 2002, em que a oposição política no Brasil esteve realmente
fragilizada, e ao extremo, não teria sido o caso de a ANJ ter tomado
para si as dores daquela oposição, muitas vezes, capenga?
11. E,
no caso acima, como a ANJ acha que teriam reagido os governos Fernando
Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso?
12. Com o
histórico de nossos veículos de comunicação, muitos deles escorados em
sua antiguidade, como aferir se há pureza de intenções por parte da ANJ
em sua decisão de tomar para si responsabilidade que só lhe poderia ser
concedida pelo voto dos brasileiros depositados nas urnas
periodicamente? Não seria uma usurpação de responsabilidade?
13.
Afinal, não é através de eleições democráticas e por sufrágio universal e
secreto que a população demonstra sua aprovação ou desaprovação a
partidos políticos?
14. Será legítimo que, assinantes de jornais e
revistas representados pela associação presidida por Maria Judith Brito
passem, doravante, a esmiuçar a cobertura política desses veículos,
tentando descobrir qual a motivação dessa ou daquela reportagem, dessa
ou daquela nota, dessa ou daquela capa?
15. E quanto ao direito
dos eleitores de serem livremente informados… que garantias estes
terão de que serão informados, de forma justa e o mais imparcial
possível, das ações e idéias do governo a que declaradamente se opõe a
ANJ?
16. Para aqueles autoproclamados guardiães da liberdade de
expressão e do Estado democrático de direito: será papel dos meios de
comunicação substituir a ação dos partidos políticos no Brasil, seja de
situação ou de oposição?
17. Em isso acontecendo… não estaremos
às voltas com clássica usurpação de função típica de partido político? E
não seria esta uma gigantesca deformação do rito democrático?
18.
Repudiam-se as relações deterioradas entre governo e mídia na
Venezuela, mas ao que tudo indica nada se faz para impedir sua
ocorrência no Brasil. Ironicamente, os maiores veículos de comunicação
do país demonizam o país de Hugo Chávez. A origem do conflito político
na Venezuela não está umbilicalmente ligado ao fato que na Venezuela os
meios de comunicação funcionam como partido político de oposição,
abrindo mão da atividade jornalística?
19. Esta declaração da
presidente da ANJ, publicada no insuspeito O Globo, traduz fielmente o
objetivo de a ANJ estabelecer a ruptura com o governo, afetar a
credibilidade da imprensa e trazer insegurança a todos os governantes,
uma vez que serve também aos governos estaduais e dos municípios onde a
oposição estiver fragilizada?
20. Considerando esta declaração um
divisor de águas quanto ao sempre intuído partidarismo e protagonismo
político dos grandes veículos de comunicação do país, será que não seria
mais que oportuno e inadiável a ANJ vir a público esclarecer tão
formidável mudança de atitude e de missão institucional? Por que não
abordar o assunto de forma clara e transparente nas páginas amarelas da
revista Veja? Por que não convidar a Maria Judith Brito para ser
entrevistada no programa Roda Vidada TV Cultura? Por que não convidá-la
para o Programa do Jô? E para ser entrevistada pelo Heródoto Barbeiro na
rádio CBN? Por que não solicitar a leitura de “Nota da ANJ”sobre o
assunto no Jornal Nacional? Por que não submeter texto para publicação
na seção “Tendências/Debates” do jornal Folha de S.Paulo, onde a
presidente trabalha? De tão interessante não seria o momento de a
revista Épocatraçar o perfil de Maria Judith Brito? E que tal ser
sabatinada pela bancada do Canal Livre, da Band?
Prudente e sábio
Já
que comecei falando de estranheza, estranhamento etc., achei esquisito a
não-repercussão ostensiva da fala da presidente da ANJ junto aos
veículos de seus principais afiliados. Estratégia política? Opção
editorial? Ou as duas coisas?
Finalmente, resta uma questão de
foro íntimo: que critério deverei usar, doravante, para separar o que é
análise crítica própria de um partido político, para consumo interno de
seus filiados, daquilo que é matéria propriamente jornalística, de
interesse da sociedade como um todo?
Todos nós, certamente, já
ouvimos centenas de vezes o ditado “cada macaco no seu galho”. E todos
nós o utilizamos nas mais diversas situações. O ditado é um dos mais
festejados da sabedoria popular, é expressão de conhecimento, nascido da
observação de fatos; um aprendizado empírico. Vem de longa data e se
estabelece porque pode ser comprovado através da vivência e mais
recentemente foi citado por Michel Foucault e Jurgen Habermas. No caso
aqui abordado, o ditado popular cai como luva assim como as palavras de
Judith Brito ficarão por muito tempo gravadas no bronze incorruptível da
nossa memória.
Mesmo assim sinto ser oportuno aclarar que
entendo como papel da mídia atividades como registrar, noticiar os
fatos, documentar, fiscalizar os poderes, denunciar abusos e permitir à
população uma compreensão mais ampla da realidade que nos abarca. Neste
rol de funções não contemplo o de ser porta-voz de partido político,
seja este qual for. Ora, o governo tem limites de ação: operacionais,
constitucionais, políticos. A mídia, quando não investida de poderes
supraconstitucionais, também tem seus limites que não são tão flexíveis a
ponto de atender as conveniências dos seus proprietários ou
concessionários. É prudente e sábio reconhecer que em uma sociedade
democrática todos os setores precisam de regulação – e a mídia não é
diferente. E é bom que não seja. Afinal, a lei é soberana e a ela todos
devem se submeter, já escrevia o pensador Shoghi Effendi (1897-1957) na
segunda metade de 1950. Nada mais atual que isto.