Previdência: “déficit” ou manipulação contábil inconstitucional?

As
análises sobre a previdência social parecem ser escritas por
correspondentes de guerra. Expressões como desarmar a “bomba-relógio” e
evitar a “explosão” das contas públicas são usuais no debate. Essa
tática de guerrilha foi inaugurada pelo presidente da República, em
1988, que sentenciou que o “País seria ingovernável”, caso o Congresso
confirmasse os direitos previdenciários na futura Constituição. Nos
últimos dias alguns correspondentes dessa guerra particular voltaram à
carga.

A
verdade é que não existe base técnica para tais ilações. Mais grave: não
existe base constitucional. Desde 1934 o financiamento da Previdência
Social no Brasil é tripartite: trabalhadores, empresas (folha de
salário) e governo (impostos). Esse é o mesmo padrão seguido por países
da OCDE, onde, em alguns casos, os impostos representam mais de 50% da
composição das fontes de receita.

A
Constituição de 1988 seguiu a OCDE e aperfeiçoou o mecanismo nacional.
Criou benefícios contributivos (INSS urbano) e benefícios não
contributivos (INSS Rural e Loas). Os primeiros são financiados pela
folha de salário formal urbana (trabalhadores e empresas). Os segundos
por impostos pré-existentes (Recursos de Prognósticos, parte do
PIS-PASEP) e por outros criados pelos constituintes (CSLL e COFINS) para
essa finalidade exclusiva.

Mais
especificamente, o artigo 194 institui a Seguridade Social, integrada
pela Previdência, Saúde e Assistência Social; e o artigo 195 institui o
Orçamento da Seguridade Social, onde são descritas as fontes de
financiamento (Folha de Salário e Impostos – CSLL, COFINS, PIS-PASEP e
Loterias) constitucionalmente vinculadas ao financiamento dos setores
que integram a Seguridade Social.

A questão
de fundo é que os setores conservadores resistem em aceitar o que reza a
Constituição. A mesma negativa tem sido praticada pela área econômica
de todos os governos desde 1988. Optaram claramente por manipulações
contábeis, ao arrepio da Lei:

• A
primeira inconstitucionalidade é a forma de apresentação dos dados do
MPAS desde 1989. Não considera a Previdência como integrante da
Seguridade. Parte do princípio de que a folha de salário do trabalhador
urbano deve cobrir o gasto com o INSS urbano e do INSS rural. O
resultado é um “rombo” do INSS rural. Ora, os artigos 194 e 195 rezam
que o INSS rural (não contributivo) deve ser coberto pelas receitas de
impostos. Com base no critério oficial, quem fala em “Déficit” da
Previdência comete o mesmo equívoco de sentenciar o “rombo” das contas
do Legislativo, do Judiciário e das Forças Armadas (também financiadas
por impostos).

• A
segunda inconstitucionalidade é que desde 1989 o Executivo federal
jamais apresentou o Orçamento da Seguridade Social, como rezam os
artigos 195, 165 e o 59 (Disposições Transitórias).

• A
terceira inconstitucionalidade é a recorrente captura dos recursos do
Orçamento da Seguridade Social para outras finalidades não previstas no
artigo 194. Como se sabe, esse Orçamento é superavitário. Portanto à luz
da Constituição da República não há como se falar em “déficit” na
Previdência ou da Seguridade. Na verdade sobram recursos que são
utilizados em finalidades não previstas na lei.

Após 20
anos de debates baseados em mitos e falsos argumentos, alimentados por
amplos setores da mídia e do mercado, pergunto se a impetração de três
ações públicas de inconstitucionalidade não seria o caminho mais
adequado a ser trilhado pelo movimento social e sindical?

Dado esse
pano de fundo, a mesma tática de guerrilha novamente orienta o debate
proposto por setores da ortodoxia ao se oporem ao reajuste dos
aposentados que recebem acima do piso e ao fim do Fator Previdenciário.

No
primeiro caso, o artigo 194 reza o princípio da “irredutibilidade do
valor dos benefícios.” E o artigo 201 determina que “é assegurado o
reajustamento dos benefícios, para preservar-lhes, em caráter permanente
o valor dos benefícios, conforme critérios definidos em lei.” O
objetivo era evitar prática corrente na ditadura que, para combater a
inflação, impunha perdas reais aos valores dos benefícios. Para corrigir
esse fato o artigo 58 (ADT) determinou a correção real de todas as
aposentadorias concedidas entre 1979/1984.

Todavia, a
partir de 1989 as aposentadorias superiores ao piso têm sido
reajustadas a valores muito inferiores ao salário mínimo. Há um claro
processo em curso que leva ao achatamento dos valores em torno do piso. A
situação atual reflete uma pressão que vem se acumulando nas últimas
duas décadas. É fundamental que o governo estabeleça uma política
gradual de revisão das perdas em relação ao salário mínimo acumuladas
nos últimos 20 anos.

No caso
do Fator a questão é mais complexa. Como se sabe, a Reforma da
Previdência Social consumada pela Emenda Constitucional n.20/98,
representou um notável retrocesso em relação às conquistas de 1988 e já
tornou exigentes as regras brasileiras, no nosso contexto socioeconômico
e demográfico de capitalismo tardio. No caso da aposentadoria “por
tempo de contribuição” (35 anos), até que os contribuintes atinjam 65/60
anos, incide o “fator previdenciário” (1999). O Fator é injusto, pois
induz à postergação do tempo de contribuição para o recebimento da
aposentadoria integral. É particularmente severo para os trabalhadores
mais pobres que adentram no mercado de trabalho com 15 anos de idade.
Manter o Fator é inaceitável sob a ótica da justiça social. Todavia,
simplesmente extinguir, não me parece uma medida acertada. O movimento
social precisa, com urgência, avançar na formulação de propostas
alternativas.

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