Os levantes populares na
Tunísia e no Egito são
revoltas contra o universo da miséria permanente: uma elite cega por
sua própria riqueza, corrupção, desemprego massivo, tortura e
subjugação ao Ocidente. O resgate da solidariedade árabe contra as
ditaduras repelentes e os que as sustentam é um novo ponto de inflexão
no Oriente Médio. Trata-se da renovação da memória histórica da nação
árabe que foi brutalmente destruída pouco depois da guerra de 1967. Os
acontecimentos do último mês assinalaram o primeiro renascer autêntico
do mundo árabe desde a derrota de 1967. O artigo é de Tariq Ali.
Não
pode durar muito mais porque os militares declararam que não dispararão
contra seu próprio povo, o que exclui a opção da praça de Tiananmen. Se
os generais (que sustentam este regime há muito tempo) faltarem com sua
palavra podem dividir o exército e preparar o terreno para a guerra
civil. Ninguém quer isso, nem os israelenses, que gostariam que seus
amigos estadunidenses mantivessem o seu homem chave no Cairo tanto
tempo que fosse possível. Mas isso também é impossível.
Washington
quer uma “transição ordenada”, mas as mãos de Suleiman o Fantasma (ou o
Senhor da Tortura como algumas de suas vítimas o chamam), que
empurraram goela abaixo de Mubarak, também estão manchadas de sangue.
Substituir um torturador por outro já não é aceitável. As massas
egípcias querem uma mudança total do regime, não uma operação ao estilo
do Paquistão, onde um civil sem vergonha substitui a um ditador
uniformizado e nada muda verdadeiramente.
A infecção tunisiana
se expandiu muito mais rapidamente do que se poderia imaginar. Após uma
longa letargia induzida por derrotas (militares, políticas e morais) a
nação árabe está despertando, A Tunísia impactou imediatamente a
vizinha Argélia e esse estado de ânimo cruzou então o Jordão e chegou
ao Cairo uma semana depois. Estamos sendo testemunhas de uma onda de
levantamentos nacional-democráticos que lembram mais as agitações de
1848 – contra o Czar, o Imperador e seus colaboradores – que varreram a
Europa e foram presságios de posteriores turbulências. Este é o 1848
árabe. O Czar-Imperador de hoje é o presidente da Casa Branca. Isso é o
que diferencia estas proto-revoluções dos assuntos de 1989: isso e o
fato de que, com poucas exceções, as massas não se mobilizaram elas
mesmas no mesmo grau. Os europeus do leste se submeteram aos
ocidentais, vendo nisso um futuro feliz e entoaram “Tomem-nos,
tomem-nos, já somos vossos”.
As massas árabes querem romper com
o horrível abraço. Os Estados Unidos e a União Europeia têm dado seu
apoio a ditadores dos quais (as massas árabes) querem se livrar. São
revoltas contra o universo da miséria permanente: uma elite cega por
sua própria riqueza, corrupção, desemprego massivo, tortura e
subjugação ao Ocidente. O redescobrimento da solidariedade árabe contra
as ditaduras repelentes e os que as sustentam é um novo ponto de
inflexão no Oriente Médio. Trata-se da renovação da memória histórica
da nação árabe que foi brutalmente destruída pouco depois da guerra de
1967. Neste aspecto, o contraste não pode ser mais vivo. Gamal Abdel
Nasser, apesar de seus erros e debilidades, viu a derrota de 1967 como
algo sobre o qual teve que assumir sua responsabilidade. Renunciou.
Mais de um milhão de egípcios se reuniram no coração do Cairo para
pedir que ele ficasse no poder. E ele mudou de opinião. Morreu no cargo
poucos anos depois, com o coração dilacerado e sem dinheiro. Seus
sucessores entregaram o país a Washington e a Tel Aviv por um prato de
lentilhas.
Os acontecimentos do último mês
assinalaram o
primeiro renascer autêntico do mundo árabe desde a derrota de 1967.
Todos os cataventos sempre alertam para não se ficar nunca no lado
equivocado da história e evitar sempre toda experiência de derrota, mas
foram surpreendidos por estes levantes. Esqueceram que as revoltas e as
revoluções, formadas por circunstâncias reais, ocorrem quando as
massas, as multidões, a cidadania – não importa como as chamamos –
decidem que a vida tornou-se tão insuportável que não será mais
suportada. Para esta gente, uma infância pobre e a injustiça resultam
tão naturais quanto um pontapé na cabeça recebido na rua ou um
interrogatório brutal na cadeia. Já experimentaram tudo isso, mas
quando as mesmas condições ainda estão presentes e agora já são
adultos, então o medo da morte retrocede. Quando se atinge essa etapa,
uma só faísca pode acender um fogo na savana. Neste caso, literalmente,
como demonstra a tragédia do jovem que se imolou na Tunísia.
Estamos
no princípio da mudança. As massas árabes não foram sufocadas pela
força desta vez e não sucumbiram. O que oferecerão ao seu povo os que
substituirão os déspotas na Tunísia e no Egito? A democracia, por si
só, não pode alimentá-los ou dar-lhes emprego…