Revista dos Bancários entrevista Inaldete de Andrade, liderança do movimento negro pernambucano

Nesta
quinta-feira, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, reproduzimos
aqui a íntegra da entrevista publicada na
Revista
dos Bancários
 deste mês, com Inaldete Pinheiro de Andrade, enfermeira, escritora e
uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado em Pernambuco.
Confira:

Vozes
femininas do movimento negro

Os griot são
contadores de histórias em terras africanas: respeitados guardiões
da memória de seus povos em lugares onde predomina a oralidade.
Inaldete Pinheiro de Andrade é uma griot afro-brasileira, com
sotaque nordestino.

Enfermeira e escritora, ela é uma das guardiãs
da história e cultura negra: de escola em escola, fala com a
linguagem das crianças sobre escravidão, racismo e exclusão; sobre
resistência e orgulho da raça. Em seus livros e histórias,
narradas ao povo miúdo, ela dá voz à heróis esquecidos ou
invisibilizados. Entre todas estas tramas, estão os 35 anos do
movimento negro em Pernambuco, uma história que ela ajudou a
construir.

Pela sua voz, nesta entrevista à Revista dos
Bancários
, surgem outras vozes, sobretudo femininas: mulheres
negras que tiveram participação essencial em cada uma das
conquistas do movimento. Confira os principais pontos da entrevista,
feita especialmente para a edição de novembro, Mês da Consciência
Negra.

>>
Leia
a
Revista dos Bancários

Fala
um pouco sobre a criação do movimento negro…
Eu vim para o
Recife em 1969, para estudar enfermagem e tinha uma colega de turma,
Irene Souza, que costumava passar as férias em São Paulo. Lá, ela
e as primas frequentavam um grupo da USP, de universitários negros.
E nós ficávamos encantadas com essa possibilidade. Em 78, houve um
protesto em São Paulo, depois de um incidente em que um atleta do
Clube Regatas foi impedido de entrar na área social do clube por ser
negro. Passaram a chamar o movimento, que também incluía não
negros, de Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial.
Eu li sobre isso em um jornal alternativo chamado Jornal Versos, onde
o jornalista Hamilton Pereira e Teresa Santos, que estava em
Guiné-Bissau como colaboradora da ONU, toda semana escreviam algo
sobre a África ou sobre o Movimento Negro Unificado. Em 79,
coincidentemente, encontramos com um colega chamado Sílvio Ferreira
e marcamos uma reunião lá em casa. Naquele momento, a gente assumiu
que estava criando um grupo de movimento negro. Ainda nos reunimos
várias vezes em minha casa, antes de decidir buscar uma sede, que
funcionou durante vários anos na sede do DCE (Diretório Central dos
Estudantes da UFPE).

Nestes 35 anos, o que você
destacaria como momentos importantes do movimento?
Muita gente
entrou e muita gente saiu no movimento. E neste tempo, ganhamos
aliados importantes, também fora da militância, que ajudaram a
garantir várias conquistas. Tenho, por exemplo, um agradecimento
especial a Humberto Costa, na conquista da Lei Federal 10.639, que
institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura
afro-brasileira e africana. Essa foi uma discussão iniciada por nós.
Primeiro a gente quis que isso entrasse na Lei Orgânica do
município. Não conseguimos. Quando Humberto assumiu a Assembleia
Legislativa, tentou aprovar uma emenda, mas também não conseguiu.
Na Câmara Federal, o projeto tramitou o quanto pôde até ser
aprovado, no final da gestão de Fernando Henrique Cardoso. E, no
Senado, somente em 2003, já com Lula presidente. Ou seja, foram doze
anos de luta no parlamento. Não esqueço de minha alegria quando li
uma notinha pequena no Jornal do Commercio anunciando a conquista.

E
a lei é cumprida realmente?
O que existe são iniciativas
isoladas de algumas professoras. Houve algumas mudanças e melhorias
no material didático. Mas é preciso haver uma mudança na
mentalidade dos educadores. E, para isso, deveria haver formação.
Em 2006, o município do Recife chegou a promover dois cursos, mas só
atingiu 500 professoras e professores.

Há outras
conquistas que você credita ao movimento e tem um valor especial
para você?
Uma conquista que começou aqui diz respeito à
saúde da população negra. Era uma preocupação nossa que a anemia
falciforme continuasse matando gente, sem que ninguém soubesse sobre
a doença. Eu sou enfermeira e via isso. E aprendi sobre a anemia
falciforme, não no meu curso, mas no movimento negro. Então, já na
Marcha para Brasília, nos 300 anos de Zumbi, em 95, pedíamos a
instituição de um programa para combate a esta e outras doenças
que atingem a população negra. O Ministério da Saúde começou a
prestar atenção, chegou a criar um Grupo de Trabalho sobre o
assunto, nós chegamos a nos reunir com eles, mas não passou disso.
Dilson Peixoto, do PT, chegou a apresentar um projeto para a Câmara
de Vereadores do Recife, mas foi rejeitado. Quando Humberto Costa
assumiu a Secretaria de Saúde do Recife, na gestão de João Paulo,
ele abraçou o projeto e o programa de anemia falciforme foi
aprovado. Pouco depois, o governo federal instituiu o Programa de
Saúde da População Negra, que foi um imenso salto de qualidade
para o atendimento a esta população. E a prefeitura do Recife, por
ter sido pioneira, é uma referência na condução dos programas de
atenção à saúde dos negros. E fomos nós, do Movimento Negro, que
encaminhamos e fizemos caminhar.

Como você avalia a
importância das mulheres no Movimento Negro de Pernambuco?
Fomos
nós, sempre, quem carregamos o piano. O Alafín Oyó, criação do
Movimento Negro Unificado, teve uma gestão só de mulheres. E foi
uma época em que ele brilhou muito! Os homens que me desculpem, mas
nós fazemos a diferença. Na Educação, fomos nós, mulheres, que
garantimos os avanços. Na Saúde fomos nós, mulheres, as grandes
responsáveis pelas conquistas. A própria idealização do movimento
teve duas mulheres e um homem. E estávamos sempre lá: na
distribuição, no panfletinho, na limpeza, na luta… Claro que os
homens deram uma contribuição enorme também. Mas eu digo sem
vaidade nenhuma, nós brilhávamos…

O que mudou nestes
35 anos?
Acho que a garra inicial precisa ser recuperada.
Principalmente porque a educação não está caminhando. E se esse
pessoal mais novo não tomar as rédeas, podemos sofrer retrocessos.
Existe um pessoal mais novo nas universidades, que não tem histórico
de militância ou que passou rapidamente pelo movimento, mas está
nos NEABs – Núcleos de Estudo Afro Brasileiros, dentro das
universidades, encaminhando ações e pesquisas de interesse da
população negra.

Já que estamos falando sobre mulheres e
estamos no mês da morte de Zumbi, ele teve uma esposa guerreira não
é?
Quantas Dandaras há no mundo? Mas quantas pessoas sabem
quem foi ela? É um nome bonito, mas poucas sabem o significado
histórico de seu nome. O que nós, do Movimento Negro, adotamos
muito é o registro de nossos filhos com nomes africanos pra tentar
resgatar esse encontro com a África, de onde viemos. Meu filho,
Iorubá, sabe a história desse povo que ele carrega no nome. Mas a
história oficial não sabe sobre as mulheres. Menos ainda sobre as
negras e africanas. Não sabem sobre Nzinga, que enfrentou os
colonizadores na área que hoje é chamada Angola. Muito menos sobre
tantas anônimas, que lutaram bravamente contra a ocupação de seus
territórios e contra a escravidão de seu povo. Essas histórias
circulavam oralmente, mas aos vencedores não interessava registrar.
Só muito tempo depois é que algumas delas passaram a ir para os
livros.

Tua entrada na literatura é pra resgatar essas
histórias?
Exatamente. Eu sempre gostei muito de escrever. E
o Movimento Negro me fez sentir isso como necessidade. Em 88, durante
os 100 anos da abolição, havia pouco material que pudesse contar
nossa história para as crianças. Foi quando teve início o processo
de criação de Cinco Cantigas para se Contar e Pai Adão
era Nagô
. O Centro Luís Freire financiou e eu ia às escolas
com cartolina, lápis, tinta… contava as histórias e os alunos
recriavam com desenhos e pinturas. Contei sobre personagens daqui:
Seu Luís de França, Dona Santa, o maracatu, as cantigas de ninar…
fazendo uma conexão com a história negra. Contei sobre todo o
preconceito e perseguição às religiões do povo negro, por meio da
história do primeiro sítio de candomblé do Recife, de Pai
Adão.

Você tem outros livros publicados?
Sim,
tenho. Mas tenho por esses um carinho especial. Ainda que, em todos
os outros, eu procure fazer este mesmo trabalho. Primeiro, levo para
as crianças ouvirem.

E escreve para adultos também?
Não,
não levo muito jeito… Minha linguagem é a das crianças.

Você
acha que existe uma literatura com característica negra?
Tem,
sim. E tem alguns escritores que, embora não tenham uma literatura
negra, ficam reconhecidos por algumas obras do tipo. Como Anamaria
Machado, que tem uns quatro ou cinco livros que falam para o negro ou
contra o preconceito, entre eles “Menina Bonita do Laço de Fita”.
E tem também os autores que tem uma obra inteira marcada por estas
características. É o caso de Cuti, de Joel Rufino dos Santos… e
tantos outros que pouco são lembrados. Joel Rufino dos Santos tem um
livro sobre racismo no futebol editado pela Brasiliense há muitos
anos, com várias reedições. Agora, na Copa deste ano, ele sequer
foi citado. No entanto, um livro sobre o negro no futebol brasileiro,
de outro autor, não negro, foi reeditado com muita pompa. Eu
pergunto: que invisibilidade é essa? Um livro que fala sobre o
racismo, tão presente na história dos esportes e que agora está
aparecendo com tanta força. Um esporte como o futebol, com tantos
atletas negros, em que o rei é negro…

No entanto, o rei
negro já deu várias declarações racistas…
Ele é
racista. E por ser racista, é tão homenageado… Ele faz o jogo do
poder. Essa é a ambiguidade do homem negro e da mulher negra: para
ser aceito, tem que fazer o mesmo jogo.

É o caso de
Machado de Assis?
Coitadinho… Ele era contra a escravidão,
mas pra assinar as crônicas em que expunha isso, tinha que usar
pseudônimo. Na época da luta pela abolição, enquanto alguns
botavam a cara, entre os quais muitos não negros, ele não teve
coragem. Usava vários pseudônimos. Sempre foi esbranquiçado pela
história e por ele mesmo. Dizem que aquele bigodão era pra cobrir
os lábios grossos. Ele sempre negou sua própria raça porque, caso
contrário, seria alijado do meio…

Quais são hoje as
grandes bandeiras do movimento negro?
As mesmas, porque não
se concluiu nada. Nem mesmo a abolição foi concluída. Continuamos
na luta para que a educação seja diferente, que inclua o negro nos
livros didáticos; que a saúde tenha atenção especial à população
negra; e que a gente consiga um dia sair da marginalidade em que
fomos colocados. Uma vez, eu estava passeando na Cinelândia, no Rio
de Janeiro, e vi um policial correndo atrás de um jovem negro. Pouco
depois, escutei o comentário de alguém que dizia que tem mesmo é
que matar esses negros. É isso que nossos jovens negros vivem no dia
a dia, nas favelas e periferias do Brasil afora. Meu filho, que teve
a felicidade de estudar em uma escola particular, tinha quatro anos
de idade quando chegou pra mim e disse: – Mãe, se eu não fosse
preto e não me chamasse Iorubá, os brancos me respeitariam. Isso é
muito doloroso. O negro e a negra, para serem respeitados, se sentem
na necessidade de se fazerem brancos…

Essa campanha
eleitoral teve um pouco de racismo?
Muito.
O preconceito contra o Norte e Nordeste é, também, um preconceito
contra a população negra. A maioria dos que estavam contra a
presidenta Dilma estavam contra a política de cotas e todos os
programas de redução das desigualdades

Expediente:
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