Em meio aos problemas econômicos que enfrenta o governo argentino, centenas de milhares de pessoas recordaram o golpe de estado de 24 de março de 1976 em uma marcha nacional que teve como epicentro a histórica Praça de Maio. A manifestação foi uma recordação da hora mais sombria da história argentina no século XX, mas também um voto tácito de apoio à política de direitos humanos e sociais do kirchnerismo. Nos últimos dez anos, o kirchnerismo anulou as leis de Obediência Devida e Ponto Final, que outorgavam impunidade nos processos por violações de direitos humanos, declarou-se “filho das Mães da Praça de Maio” perante a Assembleia Geral das Nações Unidas e avançou nos julgamentos dos responsáveis pelo crime de genocídio durante a ditadura.
Desde 2003, esses julgamentos já resultaram em mais de 500 condenações, há cerca de mil outros processos em curso e se ampliou a responsabilização pelos crimes de lesa humanidade aos colaboradores civis da repressão. A consigna deste novo aniversário – “Democracia ou Corporações” – vai mais além ao traçar uma continuidade entre o golpe de 1976 que contou com o decidido apoio de setores empresariais e agrários há 38 anos e a atual pressão que sofre o governo de Cristina Kirchner por parte dos interesses econômicos, financeiros e midiáticos mais concentrados do país. “É evidente que as corporações estão querendo atentar contra esta democracia que custou tanto sangue aos argentinos”, disse Taty Almeida, integrante das Mães da Praça de Maio.
Os problemas estão à vista. No final de janeiro houve uma desvalorização do peso de 20%, a inflação dos primeiros meses do ano foi de mais de 7%, os professores estão em greve em 11 das 24 províncias e a taxa de juro disparou para 30% para segurar o peso e evitar uma disparada para o dólar. Em 2013, houve superávit comercial, mas a balança de pagamentos teve um déficit de 4,43 bilhões de dólares pelo pagamento da dívida, a perda do autoabastecimento energético e o déficit da indústria, concentrado nos setores de automóveis, químicos e eletrônicos de consumo, pontos fracos do projeto reindustrializador e de fortalecimento do consumo interno do kirchnerismo.
“A mudança de rumo (do kirchnerismo) permitiu recuperar a produção e o emprego e atender necessidades sociais urgentes, mas agora reaparecem problemas vinculados ao modelo de industrialização por substituição de importações. Por um lado, há a necessidade de uma elevada proporção de insumos e de equipamentos importados para a produção manufatureira. Por outro, uma baixa capacidade de exportação de bens de origem industrial”, escreveu no Le Monde Diplomatique um dos economistas heterodoxos mais prestigiados da Argentina, o ex-ministro da Economia, Aldo Ferrer.
A responsabilidade das corporações para este estado de coisas é evidente. Cerca de 64,1% das exportações nacionais estão nas mãos de 200 empresas. Apesar da nacionalização da petroleira YPF em 2012, a estrangeirização da economia é alarmante. Das 500 maiores empresas em nível nacional, 321 são estrangeiras. E os conglomerados midiáticos bombardeiam diariamente o governo com qualquer tema à mão: segurança, inflação, salários, e até futebol (o governo tornou gratuita a transmissão ao vivo dos jogos do campeonato nacional, retirando o negócio que estava sob controle do grupo Clarín).
O apoio popular, a negociação com o Clube de Paris sobre uma dívida de cerca de 9 bilhões de dólares e, sobretudo, o jogo de braço com os Fundos Abutre que será decidido na Corte Suprema dos Estados Unidos este ano serão fundamentais para o futuro do governo de Cristina Fernández de Kirchner. Com um panorama complicado, o governo tem duas coisas a favor. Em primeiro lugar seus avanços sociais garantem uma sólida base de sustentação política. Em comparação com 2003, hoje o desemprego é de 6,3% (era 25% há dez anos) e o coeficiente Gini que mede a desigualdade é de 0,41 (era de 0,54 naquele período). Em segundo lugar, a oposição está dividida e é patética sua ausência de propostas.
O fenômeno não é novo. Esses dois fatores – inclusão social e falta de alternativa da oposição – têm mantido o peronismo no centro da cena política nacional desde sua primeira eleição em 1946. O líder e fundador Juan Domingo Perón tinha clara consciência do tema. “Não é que fôssemos tão bons. É que os que vieram depois de nós eram tão ruins que passamos a ser ótimos”, resumiu ele pouco antes de sua morte em 1974, ao explicar a duradoura popularidade de seu movimento.