Crise econômica pode ampliar desigualdades entre homens e mulheres

Historicamente, as relações desiguais entre homens e mulheres na
sociedade foram sustentadas pela separação e hierarquização do trabalho
através do sexo. O trabalho de homens e mulheres é separado entre
produtivo e reprodutivo, e é hierarquizado de tal forma que o trabalho
produtivo, considerado “masculino”, tem maior valor econômico que o
reprodutivo, considerado “feminino”. Historicamente, também foram
relegados às mulheres o trabalho doméstico e de cuidados, não
remunerados e excluídos do que se compreende hoje por economia.

Romper
com a divisão sexual do trabalho sempre foi uma luta do movimento
feminista. Porém, num cenário de crise capitalista como o atual, colocar
este tema no centro do debate é estratégico para combater as
desigualdades entre homens e mulheres. Reunidas esta semana num
seminário internacional em São Paulo, especialistas do campo da economia
feminista de diferentes partes do mundo afirmaram: é urgente construir
uma nova dinâmica de relações sociais e desenhar um novo paradigma de
sustentabilidade da vida humana.

“A divisão sexual dos trabalhos
profissional e doméstico entre homens e mulheres não é resultado de uma
conciliação harmônica entre papéis, mas de relações sociais
contraditórias e antagônicas. É reflexo de relações de exploração,
opressão e dominação dos homens sobre as mulheres”, afirma Helena
Hirata, socióloga e pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisas
Científicas (CNRS) da França. “Daí a importância de reconceitualizar o
trabalho da maneira mais ampliada possível, de ter uma visão ampla de
trabalho: profissional e doméstico, remunerado ou não, formal ou não
formal. Se excluímos o trabalho doméstico da economia, tornamos
invisível grande parte do trabalho das mulheres”, explica.

O
tema não é novidade. Apesar do ascenso das mulheres no mercado de
trabalho nos últimos 45 anos – incluindo a ultrapassagem dos homens no
campo da escolaridade em quase todas as áreas – os trabalhos domésticos e
de cuidados permanecem a cargo das mulheres. Na França, por exemplo,
uma mulher casada com filhos dedica ao trabalho doméstico 4,36 horas por
dia, enquanto os homens destinam apenas 2 horas aos serviços da casa e
da família. No Japão, a desigualdade é brutal: mais de 4 horas por dia
para as mulheres contra 20 minutos dos homens. No Brasil, a última
pesquisa do IBGE mostrou que, em 2009, as brasileiras dedicavam 20 horas
semanais ao trabalho doméstico contra 9,5 dos homens.

Segundo as
pesquisas, a desigualdade também persiste no mercado de trabalho
convencional. Com o aprofudamento da globalização, a precarização do
trabalho atingiu mais as mulheres do que os homens do ponto de vista do
emprego. “Os empregos femininos criados são vulneráveis, com condições
de trabalho precarizado. Lutamos muito para haver trabalho profissional
para as mulheres, mas isso reforçou toda uma lógica de trabalho
precarizado”, disse Helena Hirata. “E as mulheres que saíram de casa
para trabalhar o fizeram com o que chamamos de externalização do
trabalho doméstico, via delegação das tarefas de cuidar das roupas, da
casa e das crianças para outras mulheres. Esta delegação é incrivelmente
desenvolvida no Brasil. Em 2010 eram quase 7 milhões de mulheres
diaristas”, acrescenta.

Para a equatoriana Magdalena Leon, da
Rede Latino-americana Mulheres Transformando a Economia (REMTE), o
próprio modelo capitalista se encarregou de tornar as mulheres visíveis e
de instrumentalizá-las para sua sustentação, com a multiplicação de
trabalhos. “Durante o ajuste neoliberal, por exemplo, quando o que
estava em jogo era a mercantilização da vida, as mulheres desenvolveram
estratégias de sobrevivência, afirmando nosso papel como permanentes
geradoras de meios de vida e condições de subsistência, que vão além do
dinheiro”, relata. “Nós, feministas, recuperamos princípios de uma outra
economia: a reciprocidade, solidariedade e complementariedade, em vez
da concorrência e eliminação do outro”, conta.

Agora, num novo
cenário de crise capitalista, o risco de ampliação da desigualdade entre
homens e mulheres crescer no mundo do trabalho é enorme, avaliam as
feministas. Seja porque as mulheres já ocupam os trabalhos mais
precarizados, que tendem a se ampliar; seja porque a retirada do Estado
de serviços essenciais redundará em mais trabalho para as mulheres.

“O
objetivo é reduzir o que se considera necessário para garantir as
condições de vida dos trabalhadores, que custam muito. Então o Estado
transfere e privatiza serviços públicos”, critica Antonella Picchio, da
Universidade de Módena, na Itália. Para ela, o tempo e o trabalho das
mulheres são utilizados como se fossem recursos inesgotáveis para
sustentar o atual modelo econômico da sociedade.

“O problema do
trabalho não pago é central para as mulheres. Ele é usado para fazer com
que os recursos monetários distribuídos com o trabalho pago bastem para
sustentar a casa, porque outros – no caso as mulheres – trabalham sem
receber. É um problema claro. O sistema descarrega nas famílias uma
tensão grande acerca dos recursos necessários para a vida e usa as
mulheres para o trabalho doméstico e de cuidados”, explica Antonella,
para quem o trabalho não pago está no centro do conflito da questão
produtiva, distributiva e política contemporânea.

Estado cuidador – Para
enfrentar as desigualdades entre homens e mulheres no mundo do
trabalho, é necessário, na avaliação das especialistas presentes ao
seminário, transformar a atual divisão sexual do trabalho no que diz
respeito ao trabalho doméstico e cobrar o Estado sua responsabilidade
com o trabalho de cuidados. “O cuidado não é uma atitude de preocupação e
solicitude com o outro, mas é também um trabalho concreto, material”,
afirma Helena Hirata. “Temos que construir um Estado que é cuidador,
responsável e participativo. Não podemos pensar no bem estar como algo
que se dará natualmente”, acrescenta Antonella Picchio.

Na agenda
política de alguns países, o trabalho de cuidados já em sendo
redefinido como um fluxo de ações com resultados materiais substantivos
para a vida. A CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe), órgão das Nações Unidas, já afirma em seus documentos que o
cuidado de pessoas dependentes deve ser compartilhado entre o Estado e
as famílias. “É uma agenda que aos poucos começa a ser consenso entre
líderes políticos da região. Estamos em momento de inflexões, de
reflexões e redefinições de relações”, analisa Magdalena Leon. “Mas esta
crise está andando em grande velocidade e é uma das maiores. E se as
mulheres não lutarem por outra política, serão sacrificadas”, conclui
Antonella.

O Seminário Internacional Feminismo, Economia e
Política: desafios e propostas para a igualdade e autonomia das mulheres
foi organizado pela SOF – Sempreviva Organização Feminista.

Expediente:
Presidente: Fabiano Moura • Secretária de Comunicação: Sandra Trajano  Jornalista ResponsávelBeatriz Albuquerque • Redação: Beatriz Albuquerque e Brunno Porto • Produção de audiovisual: Kevin Miguel •  Designer Bruno Lombardi