Por Mauricio Colares(*)
O ataque numa sala de cinema, que deixou 12 mortos e mais de 50
feridos na cidade de Aurora, subúrbio de Denver, estado do Colorado, nos
Estados Unidos, é o mais recente capítulo de um sistema descrito pelo
escritor mexicano Octavio Paz que “não pode senão provocar violentas
rebeliões individuais”, onde a espontaneidade se vinga “em mil formas
sutis ou terríveis”. As imagens de James Holmes mostram um jovem com
feições de um adolescente norte-americano, com um sorriso de comercial
de creme dental. Paz também escreveu sobre esse tipo de sorriso que
“nega a velhice e a morte, mas imobiliza a vida”. O artigo é de Mauricio
Colares.
Há homens que não são profetas, ao menos em
seu sentido místico, mas que pelo uso da razão chegam muito longe na
percepção de fatos que se darão futuramente e que, em verdade, ainda que
em menor grau, já podem ser entre vistos desde então. Em 1950 Octavio
Paz lançava O Labirinto da Solidão, um marco de uma mudança
radical no pensamento filosófico, político e artístico da América Latina
a partir do amplo retrato que traça da mexicanidade. Mas o que chamava e
chama a atenção também nesta fundamental obra é a descrição da
assombrosa tentativa de totalização do continente por uma nação que
surrupia das outras a expressão Estados Unidos e que, ademais, impõe-se a
todo o mundo. “O mundo foi construído por ele e está feito a sua
imagem: é seu espelho”, dizia Paz. A lúcida e respeitosa descrição foi
minimizada pelos americanos quando não rechaçada como a xenofobia de um
mexicano.
Não obstante, o ataque numa sala de cinema, que deixou
12 mortos e mais de 50 feridos na cidade de Aurora, subúrbio de Denver,
estado do Colorado, nos Estados Unidos, é o mais recente capítulo de um
sistema descrito por Paz que “não pode senão provocar violentas
rebeliões individuais”, onde a espontaneidade se vinga “em mil formas
sutis ou terríveis”. É mais uma ocorrência da substituição daquilo que
ele chamava “realidade real” por uma “outra realidade”, esta que hoje é
denominada, por autores como Jean Baudrillard e Umberto Eco, de
“hiper-realidade”. A ambiguidade, devido ao título do filme, nas
manchetes de jornais – como, por exemplo: “Atirador deixa 12 mortos na
estreia de Batman o cavaleiro das trevas ressurge” – e às entrevistas
colidas imediatamente após o ataque – “Nós continuamos a assistir o
filme por um momento. Depois, ao perceber que os tiros eram reais, todos
entraram em pânico” – dão conta disso.
O fato de crimes como o
ocorrido em Aurora caírem logo numa brutal naturalidade só demonstram o
quanto nossas sociedades pós-modernas estão habituadas a esta
hiper-realidade que, para Baudrillard, é justamente a “simulação de algo
que nunca existiu” e que se exacerba no fundo das telas hollywoodianas.
Uma das demonstrações mais fortes disso ocorreu no próprio atentado
contra as torres gêmeas em 2001 quando muitas pessoas reagiram como se
estivessem diante de imagens associadas a filmes de ação. “Eles [a
plateia] primeiro acharam que era parte do filme, depois, que fosse
alguma espécie de brincadeira. De repente todos começaram a se jogar no
chão, e a correr para fugir do cinema”, relatou uma radialista americana
neste caso de Aurora, e teve quem dissesse que o ocorrido foi “como uma
cena de um filme de terror”.
E já que nos habituamos, junto com a
comoção globalizada instantaneamente – um vídeo já está no youtube –,
vem os desdobramentos usuais, que tem sempre como primeiro ponto traçar o
perfil do assassino.
Neste caso, como não foram deixadas as
cartas e vídeos que se tornaram comuns nesse tipo de acontecimento, as
primeiras notícias dizem que “os motivos do ataque ainda não são
conhecidos”, que o até então suspeito “não tinha antecedentes, a não ser
uma multa por excesso de velocidade”, que seu nome é James Eaven
Holmes, que tem 24 anos, que se formou na Universidade da Califórnia em
2010 e que atualmente cursa doutorado em Neurociências… Assim aquele
que até então “ninguém o conhecia”, como disse o vizinho Ben, vai se
tornando uma figura fascinante. Um certo Mitchell, que tomou uma cerveja
com ele, ficou com a impressão de “alguém inteligente e com um jeito
orgulhoso de andar”, e há quem o descreva pela foto como “um rapaz
bonito, com cabelos escuros, sobrancelhas inclinadas e desiguais, e
longas costeletas. A barba está por fazer; um ligeiro sorriso se esboça
em seu rosto”.
Mais perigosas do que o fascínio que exercem nas
massas em todas as eras aqueles que se tornam assassinos a partir de uma
mistura de impotência e reação instintiva a um sistema, está a
institucionalização lógica do massacre, como faz a polícia estadunidense
ao tornar público que se tratou de “uma ação individual” e que Holmes
“não tem vínculo algum com grupos terroristas”. Duplo ataque do Estado
policialesco: um, diz que é possível um grupo de assassinos dispostos a
praticar o mesmo tipo de ação praticada por Holmes, o que torna suspeito
a qualquer um que não faça parte do roll dos bons americanos, mas que
ao mesmo tempo implica todos os mesmos bons americanos; dois, que sua
ação é a mesma de um terrorista, embora ele não o seja, e assim coloca
todo o mundo sob a suspeição terrorífica. “Por uma parte a sociedade
norte-americana se fecha ao exterior; por outra, interiormente, se
petrifica. A vida não pode penetrá-la”, dizia Paz.
A própria
comoção, em tempos de velocidade informática, é mais passageira que os
cinco dias de luto estabelecidos pelo governo estadunidense em memória
das vítimas e nada mudará na hiper-realidade cotidiana. O próprio
arsenal de armas sofisticadas e o surpreendente sistema de explosivos
armados no apartamento de Holmes, comprados pessoalmente ou adquiridos
legalmente pela internet – e embora cineastas como Gus van Sant, em
Elefante, e Michael Moore, em Tiros em Columbine, já tenham denunciado
há muito a facilidade de se conseguir armas de fogo nos Estados Unidos
–, não mudará em nada a política da influente National Rifle
Association, que acusa o presidente Barack Obama de favorecer a
estratégia das Nações Unidas de limitar o “direito constitucional dos
cidadãos americanos de possuir armas de fogo”.
Apesar dos
produtores de Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge afirmarem que “ir
ao cinema faz parte de nosso tecido social e este ato sem sentido nos
choca profundamente”, em Hollywood a única preocupação é que o incidente
afete as bilheterias. Afora isso, além do policiamento ostensivo nas
salas desde então, por temor que o ataque seja copiado, e da proibição
dos adolescentes em utilizar máscaras e vestimentas do filme, não haverá
qualquer alteração na estética cinematográfica. O diretor do filme,
Christopher Nolan, disse à imprensa que sentia um “profundo pesar por
esta tragédia absurda”, que violou “a inocência do cinema”. Para todos
que estamos acostumados a ver na tela a dizimação pelos bons americanos
dos peles vermelhas, vietcongues, latino-americanos, extraterrestres,
intraterrestres, dinossauros, etc, que inocência há em Hollywood? “Não
seria mais exato dizer que os norte-americanos não desejam tanto
conhecer a realidade como utilizá-la?”, perguntaria Paz.
O
próprio Holmes joga com as contradições do sistema ao qual está
imbricado: antes de começar seu ataque, gritou na sala de cinema “Eu sou
o Coringa!”, e quando foi preso pela polícia afirmou “Eu sou o
Batman!”. Uma cruel ironia com o ingênuo maniqueísmo americano, do qual
dizia Paz ser “de uma espécie muito particular”, pois “sua ingenuidade
não exclui a dissimulação e, mais, a hipocrisia”. O que menos se quer
realmente saber, porque na verdade é o óbvio do óbvio, é das causas ou
mesmo das generalidades desse tipo de massacre. Os artifícios e esforços
do poder, ao contrário, são para minimizar e apropriar-se desse clarão
produzido por existências simples, esquecidas e estafadas de uma vida
fabricada. “O que as arranca da noite na qual elas teriam podido
permanecer é o encontro com o poder”, como diz Michel Foucault em A Vida dos Homens Infames.
Imediatamente,
Holmes passou a aparecer numa ilustre lista da qual todos se tornaram
conhecidos, da qual não deixa de fazer parte um brasileiro que matou
três pessoas num shopping em São Paulo numa sessão de Clube da Luta, em
1999. Alguns dessa seleta lista até alcançaram o mérito de ter, por
exemplo, a vida retratada em filmes, como nos de Sant e Moore citados
acima, e como o colombiano Campo Elías Delgado, do filme Satanás, que por sinal tinha sido soldado nos Estados Unidos. Na verdade, o clássico do gênero é uma obra-prima esquecida hoje, Na Mira da Morte (Targets,
1968), de Peter Bogdanovich, a qual não é baseada em fatos reais. E
nessa linha vai sendo traçada uma mortífera cartografia: entre tantos
detalhes, não se deixou de observar que Aurora é um subúrbio de Denver
perto do local do tiroteio de 1999 na escola de Columbine.
Há
quem opine que não tem nada a ver a relação entre o assassino Holmes e
os personagens do filme que utilizou justamente a première para fazer
suas vítimas. A nosso ver esse crime, assim como outros em escolas e
ambientes parecidos, é a resposta daqueles que foram infantilizados a
uma sociedade hiper-real que os infantilizou. Segundo Paz, desde a
infância, a sociedade americana “submete a homens e mulheres a um
inexorável processo de adaptação; certos princípios, conteúdos em breves
fórmulas, são repetidos sem cessar pela imprensa, a rádio, as igrejas,
as escolas e esses seres bondosos e sinistros que são as mães e esposas
norte-americanas. Presos nesses esquemas, como a planta em um vaso que
lhe afoga, o homem e a mulher nunca crescem ou amadurecem”.
Jean-Luc
Godard diz que “o maior crime dos homens maus é interromper a infância
das crianças”. Uma forma de interrompê-la, e muito própria das
sociedades hiper-reais, é cristalizá-la numa infantilização perpétua. A
resposta instintiva a uma sociedade assim é hiper-realizá-la, elevando o
nível do entretenimento mais vazio e esvaziador ao plano da
aterrorização coletiva. É a escolha psicótica e calculada de um caminho
brutal que Holmes e outros escolhem para mostrar-se reais e adultos por
meio de uma cena que protagonizam na irrealidade da vida
norte-americana. É uma violenta e assombrosa forma de anular por um
instante, de um lado, o vazio de sua sociedade e, de outro, a
hiper-realidade que a recobre como máscara holográfica.
Todas as
instituições passam imediatamente a minimizar o ocorrido a partir da
afirmação dos valores que compõem essa máscara, que se traduz bem no
apelo de Obama: “Como fazemos quando confrontados por momentos de
escuridão e desafio, devemos permanecer juntos como uma família
americana”. Que poderia dizer Obama? De nada adianta estar juntos se não
é para discutir de forma radical questões reais de percepção e mudança
na estrutura da família americana, que aí está somente sendo utilizada
por ele como metonímia de um Estado patriarcal fundado na palavra de
ordem e amparado em metáforas tenebrosas (“escuridão e desafio”) para
controlar e causar medo.
Para quem mirar as três imagens do agora
famoso Holmes presente em qualquer buscador de imagem na internet, é
interessante ver a ele: adolescente, com o característico sorriso
americano, que bem poderia participar de um comercial de creme dental;
outra em que aparece já adulto, numa foto passada, na qual aparece um
jovem simples e ainda sorridente; e, finalmente, a mais recente, com o
cabelo pintado de ruivo, tal qual alguns super-heróis, e sempre sem
perder o sorriso. E não é que Paz havia descrito inclusive esse sorriso
também. Numa comparação com os mexicanos, ele diz que estes são “tristes
e sarcásticos”, diferentes dos americanos que são “alegres e
bem-humorados”, no entanto o autor não deixa de acrescentar que “sua
vitalidade se petrifica em um sorriso: nega a velhice e a morte, mas
imobiliza a vida”.
Paz observa ainda que “em todos os lados o
homem está só”, mas que a solidão do norte-americano é de outro tipo
pelo fato de ele está “extraviado em um mundo abstrato de máquinas,
concidadãos e preceitos morais”. Diante de tantas análises que Octavio
Paz apresentou, em um tempo em que se acreditava que os Estados Unidos
era para muitos uma potência invejável, e que só fizeram exacerbar-se
cada vez mais até a atual crise americana, se vê que o crime de Holmes é
um crime muito bem situado numa subjetivação produzida e induzida há
muitas décadas nesse país, que está em consonância com o seu tempo e seu
espaço, ambos desrealizados.
Mais do que comoção, diante de
mais um massacre dessa natureza, o povo americano necessita entrar em
contato com os Paz, os Baudrillard, seus próprios filhos, já que
falávamos de família, como Sant e Moore, para modificar a orientação de
seu movimento e tornar-se dono de seu destino. Para que isso ocorra é
necessário primeiro sair de si e aceitar as críticas. “A crítica é a
aprendizagem da imaginação em sua segunda volta, a imaginação curada da
fantasia e decidida a afrontar a realidade do mundo”, disse paz já na
Volta ao Labirinto da Solidão. Se continua na sua patológica solidão,
esse tipo de massacre continua sendo injetado nos sorrisos de um
irrealizável sonho americano que acaba em crimes hediondos que chegam
com uma moral e uma lógica constituídas e, acima de tudo, recorrentes.