“Zero Um” é o mais nervoso dos quatro policiais militares que
revistam a casa de Marlene. Depois de encontrar um cigarro de maconha,
além de um relógio, munição e um computador roubados, os PMs a levam
para o quarto algemada, fazem com que ajoelhe e desferem uma rodada de
tapas no seu rosto, coronhadas na cabeça e chutes pelo corpo. É de “Zero
Um” a ideia de pegar um saco plástico: “Não vai falar, vagabunda?”. Ele
coloca o saco preto ao redor da cabeça de Marlene. Ela desmaia.
O nome da vítima foi trocado, para preservar sua identidade, mas o
apelido “Zero Um” é verídico, escolhido pelos PMs entre os codinomes
usados pelos personagens de Tropa de Elite – filme que retrata a ação do
grupo de elite da polícia militar do Rio de Janeiro.
Eram dez horas da noite do primeiro dia de 2012 quando a camareira de 28
anos autorizou a entrada dos policiais em sua casa, que fica em um
bairro pobre de Manaus. Ela estava grávida de 5 meses, perdeu a criança
dois dias depois. A “técnica” do saco no rosto para extrair informação
também aparece nas cenas de Tropa de Elite.
Na vida real, era o início de uma sessão de mais de duas horas de
tortura – relatados por Marlene à reportagem da Pública que a visitou na
Cadeia Pública Feminina “Desembargador Raimundo Vidal Pessoa”, onde
está presa desde então por posse de objetos roubados.
Marlene acordou do desmaio provocado pela falta de ar dentro do saco
preto com um jato de spray de pimenta no rosto e foi arrastada para a
cozinha. Mais uma vez, foi de “Zero Um” a ideia: esquentar objetos
metálicos no fogão. Os policiais usaram suas próprias ferramentas de
trabalho para queimá-la: primeiro, a algema, pressionada em brasa contra
sua perna esquerda com a ajuda de um alicate. Depois, a ponta do cano
do revólver, dentro da pele queimada pela algema – formando dois
círculos circunscritos.
As marcas deixadas pela polícia no corpo da camareira são
inconfundíveis. São a prova de que eles não temiam punição. Embora
amplamente conhecida pela população, a tortura cometida por agentes da
lei é um tabu para a Justiça. Raramente condena-se um policial ou um
agente carcerário pelo crime.
Uma enraizada cultura de resistência da própria corporação dificulta o
julgamento, a investigação e produção de provas. Isso quando a vítima
consegue registrar a denúncia, vencendo outra série de obstáculos antes
da abertura do inquérito. O silêncio realimenta o crime ao dar a
segurança da impunidade aos policiais violentos.
Comissão da verdade: tortura ontem e hoje – A recente criação da Comissão da Verdade, em maio desse ano, foi
considerada um passo importante para quebrar o ciclo histórico da
violência praticada por agentes do Estado no país. A cerimônia de
lançamento do grupo, que deve trazer à tona os relatos sobre tortura e
homicídio cometidos pelo regime militar, contou com um discurso
emocionado da presidenta Dilma Rousseff, ela mesmo uma vítima da tortura
em 1970. O mesmo governo que lança luz sobre os crimes do passado,
porém, faz pouco sobre a tortura que acontece no presente.
É isso que diz um duro relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), que
o governo manteve sob sigilo por quatro meses. Quando o documento foi
divulgado, em 15 de junho, não foi difícil entender o porquê: o
documento aponta diversas brechas e falhas no combate ao crime dentro
das instituições brasileiras.
Com base em visitas a presídios e entrevistas no Brasil, o Subcomitê de
Prevenção à Tortura (SPT) faz recomendações concretas sobre como os
governos podem – e devem – combater o crime. E destaca que pouco mudou
desde a última visita do grupo, em 2001. “O SPT recorda que muitas das
recomendações feitas no presente relatório não estão sendo apresentadas
ao Brasil pela primeira vez”, diz o documento. “Infelizmente, o SPT
detectou muitos problemas semelhantes aos identificados nas visitas
anteriores”.
Um dos compromissos mais simples assumidos pelo governo brasileiro com a
ONU era o de criar, até 2008, um mecanismo nacional para combater a
tortura, que teria um comitê responsável por organizar os dados
estatísticos, promover medidas de prevenção ao crime e fazer visitas
sistemáticas a presídios e delegacias.
Nem isso foi feito. O Projeto de Lei que criava o mecanismo só foi
enviado ao Congresso em setembro de 2011, o mesmo mês em que o subcomitê
voltava a visitar o país. Hoje, aguarda votação.
Caixa preta – É difícil ter uma dimensão da prática da tortura no Brasil, pois não há
um órgão que centralize as denúncias contra policiais civis e militares e
agentes carcerários. Cada polícia estadual tem sua ouvidoria (civil) e
corregedoria (militar), e o sistema penitenciário tem sua própria
corregedoria. A Pública solicitou os dados de denúncia de violência em
cada uma dessas instituições, em todos os estados. Foram 57 ouvidorias
contatadas (em alguns estados, a ouvidoria da polícia é unificada) e 18
responderam. Ou seja, menos de um terço dos órgãos em que a informação
foi solicitada.
Embora restritos, os dados dão uma ideia da dimensão do crime. Foram
1.356 denúncias de tortura, agressão física e lesão corporal praticadas
por policiais e agentes penitenciários em 14 estados entre 2010 e 2011.
A Lei de Acesso à Informação, aprovada junto com a instituição da
Comissão da Verdade, diz que os órgãos do Estado têm o dever de passar
informações públicas quando solicitados. “Por essa lei, os dados de
direitos humanos nunca mais poderão ser reservados, secretos ou ultra
secretos”, disse Dilma no discurso que saudou a aprovação da lei.
Na prática, os órgãos públicos ainda encontram avariadas maneiras de
negar o acesso à informação. Dados solicitados com até 3 semanas de
antecedência não foram fornecidos a pretexto de “falta de tempo”, e
algumas ouvidorias simplesmente se recusaram a prestar a informação.
“Não passo porque o tratamento que o jornalista dá é de servir essa
máquina do capitalismo, é para vender”, disse o coronel Lourival
Camargo, corregedor da polícia militar de Goiás.
A falta de preparo das instituições para entender a função dos órgãos em
que atuam também ficou evidente diversas vezes. Um exemplo: questionado
sobre denúncias de violência contra agentes penitenciários, o
funcionário de uma ouvidoria do sistema penitenciário (que tem como
principal função receber denúncias contra os agentes do sistema), não
escondeu seu estranhamento: “Agressão ao preso? Você não quer dizer ao
agente? Você quer saber quantos presos bateram nos agentes, né?”.
Submarino e microondas – Segundo levantamento da Pastoral Carcerária em 2010,
organização que visita presídios em todos os estados, a prática de
tortura por parte de agentes públicos foi documentada em 20 dos 26
estados acompanhados. Os relatos coletados entre as vítimas vão de
espancamentos pela polícia civil e militar no momento da prisão a
agressões dentro das unidades de detenção (veja alguns relatos no vídeo
acima). As mais comuns são feitas com porrete, cano da arma e com o uso
das mãos e botas.
José Dias de Jesus Filho, assessor jurídico da pastoral, que acompanha
todos os casos que passam pela entidade, descreve outras “técnicas”
relatadas: “Além do saco plástico, tem o microondas, que é quando deixa o
preso por horas dentro do carro no sol, ou quando coloca ele algemado
no camburão e corre, fazendo ziguezague”, ele explica. “O submarino é
quando enfia a cabeça da pessoa na água. E tem muito choque nos
testículos com o teaser”. Há ainda as técnicas específicas para as
mulheres, que são variações da violência sexual. “Eles passam a mão no
corpo, deixam a mulher nua na frente do batalhão ou levam para um lugar
ermo onde ela acha que vai ser violentada”.
Marcia Honorato, colaboradora do Comitê para Prevenção à Tortura no Rio de Janeiro,
acrescenta: a violência não é só contra pessoas que estão presas. Em
contato com mais de 15 comunidades carentes do Rio, ela recebe relatos
de violência sistemática de policiais contra os moradores dos morros
cariocas, inclusive aqueles que foram “pacificados”.
“Eles espancam e torturam sob a justificativa do desacato. Qualquer
coisa é desacato, uma festa com som mais alto, uma resposta que eles não
gostam”, afirma. “A pessoa fica arrebentada e ainda vira réu”. Segundo
ela, as agressões mais comuns são com escopeta na cabeça, socos no
rosto e chute na boca do estômago e nas costas. “Isso é o que as pessoas
veem a céu aberto e nos contam. Outras violências, que acontecem dentro
das casas, nós nem ficamos sabendo”.
Por que se tortura – E por que se tortura? Com base nas denúncias que colheram nos presídios
de 1997 a 2009, a Pastoral concluiu no Relatório Sobre Tortura de 2010
que a Polícia Civil tortura para obter informação ou forçar a confissão
de um crime; a PM tem o castigo como primeiro motivo e, em segundo
lugar, obter uma confissão; e os agentes penitenciários agridem para
castigar.
O relatório da entidade também aponta a relutância das autoridades
responsáveis por receber e apurar as denúncias como o principal motivo
para a impunidade, ou seja, as ouvidorias ou corregedorias.
Luiz Gonzaga Dantas, ouvidor da polícia do estado de São Paulo,
reconhece que as corregedorias e ouvidorias ainda não têm a autonomia
necessária para exercer o papel de fiscalização que deveriam
desempenhar. E defende uma das recomendações feitas pelo relatório da
ONU: um plano de carreira independente para os funcionários desses
órgãos. “Ocorre de policiais que trabalham na ouvidoria irem trabalhar
com as equipes que puniram. E aí, como ele fica?”, questiona Dantas.
Os corregedores lidam com outra limitação grave: depois de receber a
denúncia contra um policial, eles entram com um procedimento inicial e
pedem a abertura de um inquérito. Esse inquérito volta para a polícia,
que é quem conduz a investigação. No caso de denúncia contra policiais
civis, por exemplo, o responsável pelo inquérito que vai investigar
crimes cometidos pelos colegas é da mesma corporação.
Quando tentam quebrar o ciclo de silêncio, mentira e impunidade, presos e
seus familiares chegam a ser ameaçados pelos agentes, como aconteceu
com a Associação de Amigos e Familiares de Presos,
a Amparar, que trabalha com mães de adolescentes internados na Fundação
Casa, em São Paulo, para incentivar as denúncias de tortura. “Famílias
que denunciam são humilhadas e expostas. Eles chamam a mãe numa sala com
vários funcionários e perguntam por que ela tomou aquela atitude. Se
sabe que isso pode fazer com que seu filho fique lá ainda mais tempo”,
diz o representante da Amparar que pede para não ser identificado por
temer – ele próprio – retaliações.
Ele conta que, na segunda semana de junho, diversos pais procuraram a
Amparar para relatar violências cometidas contra seus filhos na unidade
Raposo Tavares da Fundação Casa. Os agentes foram especialmente cruéis
com os internos: “Um dos adolescentes estava com a mão machucada, os
agentes bateram sistematicamente nessa mesma mão. Outro estava ferido na
cabeça, ele tinha apanhado com o cassetete até rasgar. De novo bateram
na cabeça dele”, afirma. “É importante ressaltar que essas não são
violências isoladas, isso acontece com frequência. É a pedagogia do
cassetete”.
Morte na Polinter e a manipulação de perícias – A história de Indaiá Mendes Moreira mostra a gravidade e a urgência de
se obter controle sobre as forças policiais. Em menos de dois meses, seu
filho foi preso por tentativa de assalto, torturado e morto dentro da
carceragem da Polinter de São Gonçalo, Rio de Janeiro.
Em fevereiro de 2009, ao receber a notícia sobre a prisão de Vinícius
Moreira, então com 20 anos, Indaiá foi a duas carceragens verificar onde
ele estava. Mas os agentes se recusaram a dar informação. Ela teve que
ameaçar chamar a imprensa para ter a confirmação de onde o filho estava
preso. Depois de um mês de visitas, Indaiá já estava assustada com as
histórias que ouvia na fila: casos de detentos sendo agredidos,
extorquidos e ameaçados pelos policiais. “Teve um dia que um agente
falou bem alto pra uma mãe na fila: “A senhora quer seu filho? Vai
procurar no IML [Instituto Médico Legal]’”.
Ela lembrou da frase ao acordar com um mau pressentimento na manhã de
visita e ligou para o advogado para que a acompanhasse até a carceragem.
Lá, foi informada que seu filho estava doente e tinha saído há poucas
horas para o hospital. Correu para lá e os médicos disseram que Vinícius
havia sido levado para o hospital na noite anterior, mas nem chegou a
sair do carro da Polícia Civil. “Na porta já mandamos levar ao IML”, ela
ouviu do médico.
No IML, a família notou diversas marcas de agressão no corpo de
Vinicius, que não estavam no laudo entregue pelo instituto. Proibidos de
fotografar o corpo, os familiares tiveram que despi-lo no dia seguinte,
pouco antes do enterro, para registrar os machucados.
Mesmo com a repercussão na imprensa, o inquérito foi arquivado em abril
desse ano. Um dos argumentos do promotor é que não seria possível
determinar quem matou Vinícius.
Peritos coniventes com a tortura – Como a ouvidoria, a perícia médica também padece do vício de ser ligada à
corporação policial. “Há muitos estados em que a perícia é diretamente
subordinada à administração da polícia civil, como o Rio de Janeiro e
Minas Gerais”, afirma a médica legista Débora Vargas, membro do Grupo de
Peritos Independentes para a Prevenção da Tortura e da Violência
Institucional, ligado à Secretaria dos Direitos Humanos. “Nossa visão é
aproximar a perícia de um serviço técnico, distanciar dos órgão de
repressão”. Ela cita o exemplo de Portugal, onde os grupos de perícia
são ligados às universidades.
A autonomia da perícia é outra recomendação feita pelo relatório da ONU,
e sua importância já foi aferida na prática pela Pastoral Carcerária:
muitos detentos agredidos no momento da prisão, portanto, antes do exame
médico obrigatório ao ingressar no presídio, não têm as marcas das
sevícias registradas nos laudos. Segundo algumas denúncias feitas à
entidade, alguns policiais esperam de 15 a 20 dias para levar o preso ao
médico – período em que as marcas cicatrizam. Também é muito comum que o
mesmo policial que comete a agressão leve o preso ao médico e, em
muitos casos, acompanha o exame. “Isso acontece no Brasil inteiro”,
afirma Débora. “Temos dificuldade de fazer com que PM e polícia civil
aceitem que o preso deve ficar na sala sozinho com o médico legista”,
diz.
Há casos extremos em que os médicos nem olham para as vítimas, como
ocorreu segundo denúncia na cidade de Tefé (650 quilômetros de Manaus),
feita por quatro detentos à equipe da Pastoral. Suspeitos de tráfico de
drogas, eles contam que ficaram quatro dias amarrados dentro de um barco
antes de serem conduzidos à prisão: “Presos em correntes, esmurrados e
sufocados com o saco plástico na cabeça. Ameaçados com armas de fogo
apontadas para suas cabeças,” descreve o relatório da Pastoral.
Ao final desses dias, os quatros presos foram levados para o exame de
corpo de delito. “Ao chegarem na clínica, permaneceram na viatura e o
comandante trouxe o laudo já assinado pelo médico”, descreve o
relatório. Segundo testemunha que viu o exame, mas prefere não se
identificar, o único registro no documento é de marca da algema.
O relatório cita nominalmente um major da Polícia Militar como autor das
diversas torturas relatadas por esse e outros presos da cidade. O
documento foi encaminhado à Defensoria e Ministério Público.
A tortura psicológica e a carta de suicídio – Se sociedade e governo não reagirem, a violência policial, especialmente
contra os detentos, ela tende a se agravar com a superlotação dos
presídios, alerta o padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da
Pastoral Carcerária. Entre 2005 e 2011, o número de presos cresceu 42%,
aponta o padre. Só em São Paulo, que tem a maior população carcerária do
país, 2011 terminou com 9.417 presos a mais que 2010 – o que dá uma
média de 25 presos novos por dia no estado. Para o padre Valdir, a
necessidade de contenção aumenta com a superlotação, gerando mais
violência.
“A tortura acontece como castigo para que os presos não se amotinem, não
reivindiquem, não peçam para ser lembrados de que estão vivos”, afirma
Luciano Mariz Maia, Procurador da República em Recife e membro do Comitê
Nacional Contra a Tortura.
Nem sempre a violência cruel que define a tortura se expressa em
pancadas e sufocamentos. Nos relatos colhidos pela pastoral, há casos de
presos que dormem no chão sujo da cela e até no chão do banheiro,
presos que disputam espaço com ratos durante a noite, celas que ficam
constantemente molhadas devido a vazamentos e presos que têm constantes
infecções alimentares e alergias na pele devido à comida inadequada.Tudo
isso, segundo o procurador, é tortura.
José Carlos Brasileiro, presidente e fundador do Instituto Nelson
Mandela, organização civil que nasceu dentro do sistema carcerário,
alerta para a tortura psicológica que essas situações provocam: “A força
do terror psicológico é dos maiores: ele condiciona a pessoa à
inferioridade, humilhação, ao medo constante. A pessoa vai pro
isolamento, leva porrada, fica com a mão para trás e cabeça curvada.
Imagina quais são as consequências desse tratamento no longo prazo?”
Foi esse cenário que levou o detento Célio Rodrigues a pensar em
suicídio e manifestar essa intenção em uma carta manuscrita em junho do
ano passado. A carta foi entregue à Pastoral Carcerária por um colega de
cela depois que Célio morreu, após deixar a prisão de São Gabriel da
Cachoeira, Amazonas. Preso há “6 longos anos”, Célio escreveu: “Já
passei por tantas humilhações nesse lugar principalmente agressões
verbais e agora físicas também. Tô sofrendo muito e pra completar, (…)
dois cabos entraram na cela e tiraram os materiais de uso pessoal e
higiênico (…) ainda me agrediram fisicamente”. E continua: “Por eu ser
o detento mais antigo, sei de muitas coisas, coisas que eles fazem de
errado aqui nesse lugar, (…) como a entrada de celulares, entorpecentes e
algumas outras facilitações, e também agressões da parte deles com
outros detentos e isso acontece sempre. Eles sabem que eu sei de tudo
isso, tenho muito medo deles fazerem alguma coisa comigo, é por isso e
outras coisas, abandono da família, que tento me matar. Embora eu saiba
que quando sair daqui eles vão querer me matar”.
Vexame e tortura também entre familiares dos presos – “Existe um preconceito arraigado entre os que operam no sistema de
Justiça de que a pessoa com uma condenação – ou suspeita de um crime –
está desprovida de um atributo inerente ao ser humano: a dignidade”,
afirma Kenarik Boujikian, desembargadora do Tribunal de Justiça de São
Paulo e co-fundadora da associação Juízes para a Democracia.
Em muitos casos, essa visão se estende à família dos presos, ela
observa, principalmente em relação às mulheres que vão visitar seus
maridos ou parentes na cadeia. O procedimento padrão de revista em
muitas penitenciárias do país é fazer a mulher tirar toda a roupa e
abaixar seis vezes (três de frente, três de costas) na frente da agente
penitenciária.
Um procedimento que pode ser considerado tortura pela imposição de
sofrimento psicológico contínuo como explica Cristina Rauter, psicóloga
da Universidade Federal Fluminense e membro da equipe clínica do Grupo Tortura Nunca Mais.
“É uma situação delicada que conjuga estereótipos da sexualidade,
proibições e vergonhas. Você ser obrigado a se desnudar na frente dos
outros e mostrar as partes sexuais já mexe com muitos tabus, proibições,
valores. Fazer isso associado à suspeita de um crime é muito cruel.
Eles sabem que o familiar já tem vergonha por estar ali e exploram
isso”.
A costureira Patrícia Okorie, que entre 2010 e 2011 visitava mensalmente
o marido na penitenciária Franco da Rocha 2, na grande São Paulo, já
estava acostumada com esse procedimento. “Eu só não gostava quando
mandavam abrir a vagina com as mãos”, lembra. “Mas a gente evita
reclamar”.
Os largos limites de sua tolerância foram testados numa manhã de
setembro de 2011. Patrícia chegou cedo, era a quarta da fila. Quando
abaixou pela primeira vez na sala de revista, a agente colocou as mãos
em seus joelhos, forçando para que ela abrisse as pernas. “Eu disse que
não permitia aquilo, ela se irritou e chamou uma PM”. Enquanto esperava,
Patrícia era humilhada pela agente, que insistia que ela escondia
drogas na vagina. Ao final da segunda revista (dessa vez segurando a
respiração enquanto abaixava na frente de duas agentes e da PM),
Patrícia chorou e desabafou: “Você me acusou injustamente, vou procurar
os meus direitos”.
Por mencionar seus “direitos”, Patrícia foi acusada de desacato à
autoridade com suspensão de direito de visita por 30 dias, e obrigada a
ir a um hospital fazer uma revista “ginecológica” – exame feito por um
ginecologista para buscar drogas dentro da vagina. “Tive que assinar um
papel dizendo que estava indo de livre e espontânea vontade. Eu disse
que não era verdade e me mandaram calar a boca”.
No hospital, Patrícia conta que esperou a médica, que estava em
cirurgia, por horas. Quando entrou no consultório, a médica pediu que
ela deitasse na maca com os pés para o alto. “Achei que iam fazer
ultrassom, quando vi que era exame com as mãos fiquei com muito medo”. A
médica introduziu então um “aparelho que girava”, provavelmente um
espéculo vaginal, ferramenta que abre o canal vaginal em direção ao
útero, utilizada em exames de rotina. Assustada e sem entender o que ia
acontecer, ela contraiu os músculos abdominais, fazendo força para
resistir ao movimento do espéculo. “A cada vez que ela rodava aquela
máquina por baixo, doía. Teve uma hora que ouvi um estalo e senti muita
dor, segurei o braço da médica e pedi pra ela parar”, afirma. “No final
do exame, fiquei em pé e vi um fio de sangue escorrer pela minha perna”.
A médica não encontrou nenhum substância ilícita no interior do corpo de Patrícia.
Atormentada pela humilhação, sem conseguir dormir, Patrícia pesquisou seus direitos na Internet e achou a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura
(ACAT), que dá assistência psicológica e jurídica às vítimas. Resolveu
entrar com um processo de tortura contra a agente, mas conta que foi
chamada pela direção do presídio e recebeu uma ameaça: se continuasse, o
marido seria transferido “para bem longe”.
Logo depois de ser chamada pelo diretor, ela foi visitar o marido. “Eles
foram bem educados, nunca fui tão bem tratada ali dentro”, ela lembra.
“Foi tudo direitinho: três de frente, três de costas”.
Só quando o marido saiu da cadeia, Patrícia pode entrar com uma ação contra as agentes do presídio.
Impunidade – Mesmo quando conseguem denunciar os crimes de tortura e entrar com ações
judiciais, ainda é preciso conseguir um julgamento justo, o que é
bastante difícil. Os problemas começam com a própria lei contra tortura,
de 1997, que estabelece que o crime pode ser praticado por qualquer
pessoa – não apenas agentes do Estado. Isso significa que a mesma lei
que enquadra as violências praticadas por “Zero Um”, de Manaus, também
vale para babás que batem em crianças. “A lei é genérica, deixa frouxa a
interpretação para os tribunais, quase não tem sido utilizada para
reprimir”, afirma o procurador Luciano Maia, do Comitê Nacional Contra a
Tortura.
“O principal propósito da criação dessa lei é evitar que policiais,
agentes penitenciários ou autoridades públicas deliberadamente inflijam
violência física e mental a pessoas submetidas a sua autoridade”,
argumenta. “Mas quase não tem sido utilizada para isso”.
A tendência da Justiça é condenar mais civis do que agentes do estado por tortura revela uma pesquisa
do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, que
analisou o desfecho de 57 julgamentos de acusados de tortura que
passaram pelo Tribunal de Justiça de São Paulo entre 2000 e 2008. A
pesquisadora Maria Gorete Marques mapeou os resultados em primeira
instância que envolviam 203 réus, dos quais 181 eram policiais ou
agentes penitenciários e 22 eram civis. A pesquisadora chegou à
conclusão que a proporção que se inverte na hora da condenação: apenas
18% dos agentes julgados foram condenados por tortura, contra 59% dos
civis. Ou seja, a taxa de condenação dos agentes do estado foi três
vezes inferior à condenação de civis.
O procurador Luciano, que em sua tese de doutorado analisou
sentenças de casos de tortura praticada por agentes do Estado diz que o
policial já entra em vantagem no sistema que vai julgá-los: “O sistema
jurídico evoca o tempo todo a credibilidade do cargo, a presunção de que
ele aja corretamente”, diz.
Em uma sentença de Brasília, Luciano encontrou a seguinte afirmação: “A
polícia não tem necessidade de recorrer a qualquer espécie de
constrangimento para apurar a autoria do delito”. Já em São Paulo, o
mesmo desembargador usou o mesmo argumento em oito casos diferentes:“
[os policiais] Jamais iriam correr o risco de responder pelo crime de
abuso de autoridade ou de denunciação caluniosa para incriminar alguém
que sequer conheciam e com quem não tiveram qualquer desentendimento”.
Todos os policiais dos casos citados foram absolvidos, prolongando o
sofrimento das vítimas. Como observa a psicóloga Cristina Hauter, que
atende vítimas de tortura da ditadura militar e atuais, a impunidade
atrapalha o processo de recuperação, especialmente quando a fala da
vítima não é considerada como prova e o processo é arquivado: “Vem um
sentimento de desacreditar na justiça, no Estado. As relações de
confiança são quebradas e eles se sentem profundamente injustiçados.
Esse é o quadro mais complicado de trabalhar”, explica.
Dilma e o legado da ditadura – A visão distorcida da justiça para os casos de tortura policial está
ancorada na opinião de um grupo crescente da população – atualmente,
quase a metade dos brasileiros. De acordo com pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência,
feita em 12 capitais, apenas 52% das pessoas ouvidas em 2010
“discordavam totalmente” da ideia de que os tribunais devem aceitar
provas obtidas através de tortura. Porcentagem bem menor daquela de
1999, quando respondendo à mesma pergunta, 71% dos entrevistados
declararam “discordar totalmente” da prática.
Ainda é difícil prever qual será a influência da Comissão da Verdade no
combate à tortura de hoje ao trazer de volta os crimes cometidos no
passado. Também é difícil determinar quanto da “tradição” do período
militar é responsável pelas práticas policiais dos dias de hoje. Para a
desembargadora Kenarik, porém, esse legado de violência foi incorporado à
cultura das instituições. “Naqueles anos, havia certos grupos tidos
como inimigos do estado, eles podiam ser torturados. Hoje, apenas
mudou o inimigo”, ela diz.
Tim Cahill, pesquisador da Anistia Internacional para o Brasil, que
também faz visitas aos presídios, considera evidente a ligação entre o
crime nos dias de hoje e os cometidos no passado, mas ressalta que isso
não torna mais difícil enfrentá-lo. “Algumas pessoas dizem que o
problema de tortura no Brasil é cultural, como se fosse uma herança
inevitável, mas não é verdade”, afirma. “Cada ato é um crime e ele só
persiste porque não há uma ação do estado para coibir”.
Cahill se recorda do estrago causado pela fala da presidenta Dilma, ela
mesma vítima de torturas durante a ditadura, sobre o tema na
Universidade de Harvard em abril desse ano. Depois de palestra,
a presidenta foi indagada por um aluno sobre o caso de uma prisioneira
política na Venezuela. Em sua resposta, ao justificar porque não se
meteria na política do outro país, Dilma mandou uma mensagem perigosa:
“Eu sei o que acontece, não tenho como impedir que em todas as
delegacias do Brasil de haver tortura”.
Em resposta, 15 organizações que trabalham com o combate à tortura no
Brasil, entre elas a Conectas, a ACAT e a Pastoral, soltaram uma nota de repúdio:
“É muito grave que a autoridade máxima do País se declare incapaz de
coibir o crime de tortura nas delegacias. E é ainda mais grave que tenha
escolhido um momento de enorme visibilidade para fazer tal declaração”.