A socióloga Lorena Soler, professora da Universidade de Buenos Aires, é
especialista em história da América Latina e Caribe e profunda
conhecedora da política paraguaia, onde acompanhou de perto o dia
seguinte ao fulminante processo de destituição do Presidente Fernando
Lugo. Em uma crônica publicada no jornal Página/12, três dias após o
golpe, Lorena sintetiza na frase de uma índia pobre, ouvida enquanto
percorria uma Assunção “coberta de inesperada normalidade” , todo o
impasse da equação política que derrubou o Presidente eleito em 2008:
“Felizmente, hoje já estamos tranquilos”, sussurrou a índia, num guarani
estranho, quando comprei meu religioso chipá diário”.
Em
entrevista à Carta Maior, concedida por correio eletrônico, Lorena
deixa claro seu diagnóstico sobre o fulminante simulacro de impeachment
que sufocou o primeiro governo de recorte popular, depois de mais de 60
anos de poder conservador no país: “Não há revolução sem sujeito. E, no
Paraguai, esse sujeito é o movimento campesino, que não se manifesta a
favor do governo na Praça de Armas.”
Como foi possível a vitória de Fernando Lugo em 2008? Que forças e que fraquezas criaram espaço para sua eleição?
Fernando
Lugo Mendez chega a presidência da nação, a partir de uma aliança
partidária eleitoral, sob o rótulo da Aliança Patriótica para a Mudança,
na qual se agrupavam cinco centrais sindicais, um setor do movimento
campesino e um grupo importante de partidos de centro-esquerda. O sócio
político e institucional mais importante foi o Partido Liberal (PLRA),
que indicou o vice-presidente e disponibilizou sua estrutura partidária
nacional para ganhar as eleições. Como sempre ocorreu na história
política paraguaia, este partido, junto com o Partido Colorado (ANR),
conquistaram a maioria absoluta nas duas câmaras.
Foi então uma trajetória política na qual se misturaram interesses históricos muito distintos?
A
origem político-presidencial de Fernando Lugo se dá em março de 2006,
quando encabeçou uma manifestação coletiva de 40 mil pessoas, uma
magnitude nunca antes vista na história recente do Paraguai, que saiu ás
ruas sob o lema “Ditadura: Nunca Mais” e “O Paraguai está farto”. A
marcha multisetorial obedecia, em parte, às manobras políticas e
judiciais do presidente Nicanor Duarte Frutos (2003-2008) com o objetivo
de impulsionar sua reeleição presidencial e violar, assim, a
Constituição nacional. Neste contexto e no de uma classe política, sob
suspeita, Fernando Lugo era antes de tudo um possível presidente sem
vinculações com o status quo político, de onde retirou sua principal
legitimidade. Em seu favor pesou a conversão de uma referência
eclesiástica para um dirigente político dos movimentos campesinos que se
radicalizavam à medida que avançava o agronegócio e a expulsão das
terras. Apenas dois anos mais tarde daquela irrupção nas ruas, ele
conseguiria sua vitória como presidente. O crescimento foi tão
vertiginoso como seria sua queda.
Essa velocidade surpreendeu a estrutura de poder dominante, tornando impossível sufocá-lo num primeiro momento?
Em
2005, Lugo renunciou a seu posto eclesiástico; em dezembro de 2006
anunciou que disputaria as eleições e, em 2007, aceitou a companhia do
Partido Liberal. O cenário eleitoral de 2008 foi a expressão das novas
formas de representação e de uma mudança política em marcha. Se o
triunfo de Fernando Lugo foi inesperado na história do país, também o
foi a disputa e os candidatos presidenciais com maior volume de votos:
um bispo (Fernando Lugo, 41%); uma mulher (Blanca Ovelar, 30%); um
militar (Lino Oviedo, 22%) e um empresário (Pedro Fadul, 3%), que
conseguiram apresentar-se como lideranças, para além de seus partidos.
Em
parte, esse cenário reconhecia um antecedente nas eleições
presidenciais de 2003. Nelas, um empresário alcançou uma porcentagem de
votos similar à obtida pelo PLRA (22% e 24% respectivamente) e Nicanor
Duarte Frutos utilizou a legitimidade conquistada por fora da estrutura
partidária do coloradismo.
Lideranças liberais que lutaram contra a ditadura de Stroessner, como Domingo Laino, tiveram que papel no golpe?
A
figura de Domingo Laino, emblemática na transição à democracia em 1989,
hoje é absolutamente marginal. De fato, ele participou junto com outros
liberais sem peso no partido, do ano na Praça de Armas, dia 22 de
junho, defendendo explicitamente a Lugo, expressando repúdio ao golpe de
Estado e à atuação de seu partido no parlamento. É preciso esclarecer
que nunca se convocou a direção do Partido liberal para discutir a
questão do julgamento político de Lugo. Pelo contrário, armou-se de
maneira “express”, como os tempos do golpe exigiam, um comitê político
que respondia a Federico Franco, para que se preparassem o caminho de
sua chegada à presidência. Franco obteve o último lugar nas recentes
internas partidárias, inviabilizando que ele fosse o candidato do
partido nas eleições presidenciais de 2013.
Enfim, a destituição
de Fernando Lugo expressa também a crise interna do próprio Partido
Liberal (PLRA). Isso explica também porque das 23 vezes que o Congresso
debateu a abertura de um processo político contra o governo de Fernando
Lugo somente agora o Partido Liberal apoiou em sua totalidade essa
moção.
As organizações de esquerda não tinham conhecimento da marcha golpista?
O
golpe pegou de surpresa a todas as forças políticas. A rapidez, quase
um roteiro para os tempos televisivos, diminuiu sem dúvida a capacidade
de reação da cidadania e dos fragmentados grupos de esquerda. Inclusive,
aqueles que o concretizaram, foram antes tudo bons leitores de uma
conjuntura crítica antes que grandes estrategistas.
Como assim?
A
crise, ainda que alguns colegas se neguem a estabelecer esse vínculo,
iniciou com a matança de 11 membros do Movimento Campesino dos Carperos e
de 7 policiais, a partir da decisão do governo de Fernando Lugo de
“executar” uma ordem judicial de despejo das terras da fazenda Morombí,
de mais de 70 mil hectares, pertencente ao latifundiário, agora
empresário e antes senador pelo Partido Colorado, Blas Riquelme.
Esse episódio teve, de fato, a força simbólica letal que lhe atribui a direita?
Embora
o assassinato tenha sido um dos argumentos utilizado pelas direitas
parlamentares para abrir o processo contra Lugo, não se deveria
desvalorizar com tanta facilidade as consequências do fato, na medida em
que o assassinato dos camponeses nas terras de um latifundiário
condensa vários problemas estruturais do país e do então governo
luguista. Por um lado, Lugo rompeu aí o último elo que o vinculava ao
movimento campesino, o único ator real de seu governo.
Um ator ausente na cena mais dramática do enredo?
De
fato, o movimento campesino não se manifestou a favor do governo na
Praça de Armas. Por outro lado, as mortes evidenciam a falta de controle
estatal (que nunca se exerce em sua totalidade, mas ao menos se
ambiciona): uma justiça cúmplice dos agronegócios, do partido Colorado e
da autonomia das forças repressivas. Por último, a incapacidade do
então governo para estabelecer uma negociação com o movimento campesino
e, fundamentalmente, o fracasso da reforma agrária.
Sem
parlamento e com um movimento campesino sem maiores respostas, uma
correlação de força muito desigual frente aos poderes fáticos das ordens
políticas atuais da América Latina, não se vislumbra a possibilidade de
gerar grandes transformações. Enfim, não há revolução sem sujeito. E,
no Paraguai, esse sujeito é o movimento campesino.
Cerca de
2,5% da população tem 80% das terras no Paraguai. Lugo não conseguiu
alterar em nada essa equação que define o jogo político?
Os
problemas da terra no Paraguai iniciam com os resultados da Guerra da
Tríplice Aliança (1865-1870), onde os capitais estrangeiros adquiriram a
preços irrisórios grandes extensões de terra. Mas tarde, o regime
stronista (1954-1989) produz o ponto mais alta de concentração da
propriedade da terra nas mãos de uma burguesia que forjou a estabilidade
de uma ordem por 35 anos. Para isso, o Estado stronista utilizou as
terras públicas ainda existentes no país, sem possibilidade de
reconversão econômica, receptora de camponeses nacionais e de
contingentes de imigrantes brasileiros. O incremento da imigração nas
fronteiras deu lugar à expansão da produção agrícola e à ocupação de
terras por parte de colonos e proprietários brasileiros. Assim, a
Comissão de Verdade e Justiça do Paraguai (2009) determinou que, do
total de terras adjudicadas naqueles anos, 64% o foram de modo
irregular. Neste processo, os camponeses foram o foco central da
resistência e o alvo predileto das políticas repressivas.
Como
é possível que uma índia pobre, descrita em sua crônica recente,
publicada no Página/12, perceba o dia seguinte ao golpe como uma “volta à
tranquilidade? O governo Lugo não fez nenhuma diferença em sua pobre
vida?
Além dos fatores já expostos acerca da debilidade
política do governo, a ruptura com seu único sujeito social – os
camponeses – e sua condição de orfandade social, tanto como a ausência
de uma liderança política, não se deveria subestimar o sentido
disciplinador que condensam os momentos históricos de crescimento
econômico. Isso gera o que, nós sociólogos, chamamos de um consenso
conservador. A economia paraguaia vem crescendo a um ritmo sustentado,
com previsão de colheita e preços recordes da soja.
O
Estado paraguaio tem uma receita tributária de 13% do PIB. No Brasil,
esse índice é de 35%; na União Europeia apresenta uma média de 40%. Lugo
poderia ter feito um governo diferente com recursos tão escassos?
O
mesmo Senado que terminou realizando o julgamento de Lugo na semana
passada, foge do debate sobre a entrada em vigor do imposto de renda,
prometida pelo Paraguai em 2003 ao FMI em troca de assistência. É o
único país latino-americano que ainda não paga esse tributo. Em razão
disso, o Estado paraguaio adia uma soberania política, enquanto não
recompõe sua capacidade econômica. Sem riqueza estatal, não há soberania
possível e, em consequência, condições para a constituição de uma
vontade pública que possa se impor em uma trama de relações de forças
muito assimétrica. Lugo não conseguiu reter uma mínima parte dos lucros
extraordinários dos empresários que, mesmo assim, acabaram terminando
com seu governo. O Estado também não consegue cobrar imposto sobre a
terra ou sobre a exportação de soja. Das reformas em favor de uma ordem
mais justa, com a ambiguidade que isso supõe, só restou parte da
renegociação pelos recursos provenientes das centrais hidroelétricas de
Itaipú e Yacyretá.
Como analisa a reação dos governos do Mercosul, em especial do Brasil e da Argentina?
A
Argentina teve uma rápida reação, mas o Brasil se mostrou mais ambíguo,
ou ao menos aguarda com evidente prudência a decisão que será adotada
na próxima reunião do bloco. Até o momento, o mais viável no plano
interno é a proposta do Uruguai de antecipar as eleições.
Diferentemente
destes dois países, o Brasil desde a década de 1970 desenvolveu uma
política de integração comercial e cultural muito forte com o Paraguai e
hoje a coletividade dos brasiguaios, ou ao menos suas vozes visíveis,
reclamam que seu país de origem reconheça Franco. Esse setor conforma a
maior e mais poderosa comunidade estrangeira no Paraguai, com uma
população estimada em cerca de 300 mil pessoas. Além disso, são donos de
terras férteis e responsáveis por 70% da colheita de soja no Paraguai,
quarto maior produtor do grão.
Em 2011, Wikileaks divulgou
telegramas da embaixada dos EUA em Assunção remetidos a Washington em
março de 2009. A embaixada já relatava tratativas de um golpe contra
Lugo. Mas, a embaixada criticava os golpistas na ocasião dizendo que as
condições não estavam maduras. Você acredita que os EUA participaram
agora quando as condições amadureceram?
As intervenções
golpistas dos EUA não são estranhas aos países da América Latina. Não
foram no passado e não são agora, ainda que sem necessidade mobilizar
tanques de guerra ou de construir outro Guantánamo. Nem tampouco
recorrer à base militar norteamericana na localidade de Mariscal José
Félix Estigarribia, uma pequena população de 30 mil habitantes na
República do Paraguai, onde forças militares dos EUA construíram uma
infraestrutura de quartel para abrigar 16 mil efetivos militares.
Diferentemente
do passado, o “novo golpismo”, liderado por civis, apela a formatos
constitucionais e mantem uma fachada institucional, sendo o caso mais
similar à substituição “constitucional” de Zelaya em Honduras, em 2009.
No entanto, a possibilidade de apelar a uma legalidade abstrata,
profundamente ideológica, mas disfarçada de imparcialidade, só é
possível quando não há setores que disputem esse argumento. Geralmente,
os setores conservadores oligárquicos locais contam com o apoio dos EUA.
Porém, a pergunta deveria ser outra: como se liberta o Paraguai e a
América Latina, apesar desses atores locais e da pressão internacional
reacionária. Alguns processos recentes mostram que isso é possível, mas
no Paraguai ainda é uma incógnita.
Você acredita que até as
eleições de abril de 2013, seja possível organizar uma alternativa de
poder para repetir uma vitória à esquerda?
O desafio e a
aprendizagem deste processo, dadas as características do sistema
político paraguaio, será a formação de um movimento partidário que possa
assegurar representação parlamentar. Dadas as características da
Constituição de 1992, ou seja a Carta Magna pós-Stroessner, o Poder
Executivo não tem faculdades que permitam adotar políticas com autonomia
das câmaras de senadores e deputados. Esta é a questão decisiva.