A Cúpula dos Povos na Rio +20 vai além
do debate a respeito do limite dos recursos naturais e das mudanças
climáticas. Ao longo dos próximos dias, mais de 30 espaços
autogestionados discutem as diferentes relações do homem com o
ambiente.
Nesta sexta, 15, foi a vez dos praticantes de religiões de matrizes
africanas, da Umbanda e dos povos originários darem início às suas
atividades na Cúpula, no Encontro Mundial dos Povos de Terreiro na
Rio+20. Eles discutiram problemas, constrangimentos, demandas e
propostas relacionadas às práticas das religiões da natureza em áreas
protegidas.
O resultado das discussões e conversas gerou a Carta do Rio, um dos
documentos oficiais que serão apresentados na plenária final da Cúpula
dos Povos. Confira a carta na íntegra abaixo:
ENCONTRO MUNDIAL DOS POVOS DE TERREIRO NA RIO+20
CARTA DO RIO
As práticas religiosas na natureza têm origem milenar, ocorrendo em
inúmeras vertentes culturais, entre as quais estão as religiões dos
povos de terreiro, como os de matriz africana e os povos originários.
Essas práticas estão voltadas para a reverência às forças da natureza,
como as matas, rios, cachoeiras, praias e montanhas, além de estradas,
encruzilhadas e trevos. Reconhecendo na natureza suas divindades, esses
povos desenvolvem um profundo respeito e comprometimento em relação à
sua proteção, concebida como espaço sagrado.
Os Povos Originários sofrem com o não reconhecimento da cultura indígena
pela sociedade. Para os índios, a relação do homem com a natureza, como
afirma Carlos Tukano, representante dos Povos Originários no SEAC, é de
preservação, porque os índios sempre tiveram pelos Deuses das
florestas, da água e do ar e de todos os elementos, respeito e
reverência: “Nossa história, entretanto, é como um copo quebrado que
estamos tentando reconstruir para passar aos nossos filhos e netos.
Entre as nossas iniciativas, temos a Aldeia Maracanã, o Centro Cultural
Indígena no antigo Museu do Índio, onde praticamos a nossa
religiosidade”.
Ocorrem, entretanto, com alta frequência, situações de constrangimento e
violência quando os religiosos buscam parques e outras áreas de
proteção da natureza, tais como intimidação por parte de diversos atores
sociais, impedimento, perseguição, violência física e verbal, falta de
segurança e expulsão de áreas naturais públicas. Nos últimos anos, houve
uma relativa perda de costume de ir aos espaços naturais públicos para
cultuar os orixás, voduns, inquices e encantados, porque a ameaça de
violência por parte do Estado e de antagonistas da prática religiosa
afro-brasileira levou a isso. Alguns têm utilizado áreas privadas.
Todavia, há consenso de que isso não é solução, pois a liberdade
religiosa é um direito e não se deve pagar para poder exercê-la.
A esses problemas, identificados também nas oficinas do Núcleo Elos da
Diversidade /Programa Ambiente em Ação da Superintendência de Educação
Ambiental da Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro, em
parceria com a UERJ e os povos de terreiro, entre 2011 e 2012, somam-se
outras formas de violência no campo simbólico, como a desqualificação
dessas religiões nos meios de comunicação social, proibição ou
desqualificação dessas práticas culturais nas escolas e outros espaços,
como consta no primeiro boletim de divulgação do Núcleo Elos. Mais de
400 religiosos que participaram dos encontros no Estado do Rio de
Janeiro falaram da necessidade de atuar internamente às religiões, em
busca de maior união entre os cultos, e reconhecimento de direitos e
deveres do cidadão em relação à cultura e uso dos espaços públicos, bem
como o enfrentamento do preconceito,intolerância e constrangimento que
os religiosos sofrem em suas práticas. Os participantes denunciaram a
repressão geral do Estado e a repressão de evangélicos. Os debates sobre
os constrangimentos vivenciados destacaram ainda dois aspectos: as
reclamações e acusações de vizinhos aos terreiros e os preconceitos que
sofrem crianças e jovens que se assumem praticantes da religião. Isso
produz discriminação em escolas e de costumes, e problemas na
socialização em fase decisiva para a constituição das identidades e
grupos de pertencimento por parte de qualquer pessoa.
Foi destacado o impedimento que sofrem de acesso a áreas de cachoeiras,
rios e praias que são apropriadas de modo particular, infringindo as
leis. A ênfase dos debates girou em torno do direito público a espaços
naturais, mas denunciaram que os espaços seguros e limpos estão em áreas
privadas cujo acesso é pago. Isso é visto como uma alternativa que não
resolve o problema, tanto por ferir direitos constitucionais quanto por
privatizar uma prática que deve ser livre para os adeptos dos cultos
afro, independente de condição econômica para realizá-la.
Outro ponto mencionado foi a constatação de que a população atribui tudo
o que acontece de destruição e sujeira nesses espaços e na rua aos
cultos afro, o que é uma clara manifestação de preconceito, apesar de
reconhecerem que há parcela dos praticantes que estão mal orientados em
relação a cuidados no uso de espaços públicos e à conservação da
natureza.Os religiosos discutiram as causas dessa situação, reconhecendo
que o preconceito ocorre por desconhecimento dos fundamentos e valores
mais profundos das religiões de matriz africana, e uma associação
indevida com o “demônio” de outras religiões.
Além disso, reconheceram que uma parcela de responsabilidade da imagem
negativa em torno dessas práticas religiosas decorre de usos inadequados
de materiais e desconhecimento de práticas de conservação do ambiente,
além da negligência e omissão por parte do poder público, que não
institui políticas públicas de coletas regulares de resíduo em áreas de
uso tradicional.
Esses constrangimentos frequentes tornaram-se “naturais” com base em
preconceitos e desigualdades sociais. Na visão dos participantes, a
naturalização da desigualdade e do preconceito deve ser enfrentada e
superada por meio da mobilização dos religiosos, adoção de práticas
sustentáveis e criação de políticas públicas que assegurem a igualdade
religiosa e o respeito à diversidade cultural.
Encaminhamentos – É fundamental que o Poder Público atenda as demandas da sociedade civil e
dos povos de terreiro, garantindo o direito do cidadão à realização do
culto ao sagrado na natureza, à proteção contra violência física e
agressão verbal e ao acesso a espaços naturais limpos, sinalizados e
acessíveis. É fundamental que as políticas públicas de educação, cultura
e comunicação social contemplem as culturas indígenas e as culturas de
matriz africana e umbanda, garantindo o acesso desses grupos sociais aos
meios de comunicação social, sua presença e seus conteúdos nas
instituições de ensino, fóruns de decisão e controle social. Que haja
ética no reconhecimento da religiosidade dessas culturas.
O enfrentamento deve ser feito pela reversão desse quadro, aumentando a
mobilização e articulação do povo de terreiro por meio da comunicação, o
intercâmbio e ações educativas. Outro aspecto é a necessidade de cada
pessoa superar o medo e se assumir como religioso e defender seus
direitos constitucionais, denunciando a intolerância e participando do
processo político e educativo de superação das desigualdades sociais,
preconceitos e intolerância. Essa constatação só fortalece a necessidade
de se constituir Espaços Sagrados de uso público e reforçar a luta para
que as práticas religiosas sejam respeitadas também em outros espaços e
vias públicas, como praias, ruas, praças e cemitérios.
É recomendada a criação de redes e formas de comunicação interna, a
realização de oficinas ensinando usos de materiais ecologicamente
adequados e a produção de materiais didáticos para o povo de terreiro. É
necessária a união das religiões para que consigam dialogar em
condições de igualdade não só com o poder público, mas também com os
outros setores da sociedade, para garantir que o projeto se consolide
enquanto política pública e se fazer respeitar por aqueles que
manifestam intolerância.
Há a necessidade de que cada praticante exerça os seus direitos sem
medo, busque apoio legal na garantia de acesso a espaços naturais e da
livre manifestação religiosa, e que as companhias de limpeza urbana
apoiem o uso de encruzilhadas e de áreas naturais.
A mobilização dos povos de terreiro
deve estar vinculada também à construção das políticas públicas para a
cultura, educação e meio ambiente. É necessário ampliar o acesso a
cartilhas e materiais educativos existentes (Decálogo das Oferendas,
Elos de Axé, Oku Abó) e produzir novos materiais; estimular o acesso a
mudas e o cultivo de ervas nas casas religiosas, objetivando a
preservação do conhecimento da tradição sobre o uso das folhas nos
rituais, como também o respeito às práticas da coleta em áreas
protegidas; fomentar a função dos consagrados como
sacerdotes/sacerdotisas das folhas nas comunidades de terreiros.
Há necessidade de se conhecer os direitos e deveres do cidadão em
relação à educação, cultura, religião e meio ambiente, divulgando-os e
fazendo encontros para explicá-los e capacitar os religiosos a utilizar
os canais e instrumentos legais de participação do cidadão na defesa de
seus direitos. Muitos enfatizaram que a criação de um espaço religioso
não é nenhum presente e sim um direito, alertando, porém, que isso não
pode significar a restrição a poucas áreas. A luta é por tais espaços e
também por acesso a outras áreas públicas (encruzilhadas, cemitérios,
etc.).
Sugeriu-se ainda que esse trabalho no Rio de Janeiro fosse expandido
nacionalmente, uma vez que o quadro de repressão e intolerância no
estado é similar em todo o país e isso deve ser enfrentado e superado.
Rio de Janeiro, 15 de junho de 2012.