A bandeira da democratização da mídia esconde uma falácia: insinua
que a grande mídia, privada e comercial, seria passível de ser
democratizada. Em termos da teoria liberal da imprensa, isso
significaria trazer para dentro de si mesma “o mercado livre de ideias”
representativo do conjunto da sociedade, isto é, plural e diverso.
*Venício Lima
Publicado originalmente na revista Teoria e Debate, n° 95, dezembro de 2011.
Ao longo de 2011 participei de diversos debates sobre a mídia em
diferentes estados brasileiros, e em todos certas questões sempre
aparecem. O que significa democratizar a comunicação? Controle social da
mídia é censura? A internet democratiza a comunicação? Liberdade de
expressão e liberdade de imprensa são a mesma coisa? O que é “marco
regulatório das comunicações”?
Os debates e suas perguntas recorrentes expressam a existência de um
inegável “mal-estar” generalizado e cada vez mais difícil de esconder.
Até mesmo a grande mídia está sendo obrigada a reconhecer que,
independentemente de sua vontade, as transformações por que ela passa em
decorrência da revolução digital e seu papel na democracia finalmente
entraram na agenda pública e estão, sim, sendo debatidos.
Nesse contexto, uma diferença conceitual que me parece fundamental é
aquela existente entre regular a mídia e democratizar a comunicação.
Em artigo publicado no Observatório da Imprensa nº 555, há mais de dois
anos, chamei a atenção para o fato de que “democratizar a comunicação”
tem sido uma espécie de bandeira histórica dos segmentos organizados da
sociedade civil comprometidos com o avanço no setor.
Todavia, essa bandeira esconde uma falácia: insinua que a grande mídia,
privada e comercial, seria passível de ser democratizada. Em termos da
teoria liberal da imprensa, isso significaria trazer para dentro de si
mesma “o mercado livre de ideias” (the market place of ideas)
representativo do conjunto da sociedade, isto é, plural e diverso.
Argumentei que essa bandeira encontra dificuldades incontornáveis
identificadas, sobretudo, com relação aos mitos da imparcialidade e da
objetividade jornalística e da independência dos conglomerados de mídia.
Ademais, mostrou-se inviável em sociedades como a Inglaterra, onde
existe uma tradição historicamente consolidada de imprensa partidária.
“Democratizar a mídia”, portanto, seria viável apenas por meio de
políticas públicas que garantam a regulação do mercado das empresas de
mídia (a não oligopolização), vale dizer, basicamente, a concorrência
entre as empresas que exploram o serviço público de radiodifusão e/ou as
empresas de mídia impressa (que publicam jornais e revistas). E mais:
estimulando a “máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker) através da
criação e consolidação de sistemas alternativos de mídia –
públicos/comunitários.
As normas e princípios para esse fim já estão na Constituição Federal,
sobretudo no §5º do artigo 220, que diz expressamente que “os meios de
comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de
monopólio ou oligopólio”, e no “princípio da complementaridade” dos
sistemas privado, público e estatal de radiodifusão, inserido no artigo
223, como critério a ser observado para as outorgas e renovações das
concessões desse serviço público. Só que, como todos sabemos, essas
normas e princípios não foram regulamentados pelo Congresso Nacional, e,
portanto, não são cumpridos.
Por óbvio, regular o mercado nada tem a ver com regular o conteúdo da
mídia existente.
Já a democratização da comunicação é um processo no qual temos
avançando, em especial, por intermédio das potencialidades oferecidas
pela internet. Aqui a bandeira principal é a inclusão digital, por meio
da oferta de computadores a preços acessíveis a todos os segmentos da
população e da universalização da banda larga, possibilitando a todos
acesso de qualidade ao espaço interativo da internet.
Regular o mercado de mídia e democratizar a comunicação são, na
verdade, aspectos complementares da conquista do direito à comunicação.
Tenho reiterado que conquistá-lo significa garantir a circulação da
diversidade e da pluralidade de ideias existentes na sociedade, isto é, a
universalidade da liberdade de expressão individual e coletiva. Essa
garantia tem de ser buscada tanto “externamente” – pela regulação do
mercado (sem propriedade cruzada nem oligopólios, priorizando a
complementaridade dos sistemas público, privado e estatal e a criação e
consolidação de sistemas públicos/comunitários alternativos) – quanto
“internamente” à mídia – cobrando o cumprimento dos Manuais de Redação
que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade
jornalística possíveis. E tem de ser buscada também no acesso universal à
internet, explorando suas imensas possibilidades de superação da
unidirecionalidade da mídia tradicional pela interatividade da
comunicação dialógica, vale dizer, garantindo a participação e a
presença de mais vozes no debate público.