A crise atual é fruto do mercado financeiro, não
de governos mal comportados. O que está havendo é um sucessivo
estouro de bolhas, e os governos deveriam ampliar seus deficits, não
cortá-los. Para isso, os políticos precisam se emancipar de Wall
Street.
A visão é de Heiner Flassbeck, 60, diretor da
Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da
Unctad (Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento). Para
o economista, que foi vice-ministro de Finanças da Alemanha
(1998-1999), a recessão de agora pode ser pior e seguir o formato da
japonesa.
Para ele é essencial enxugar o mercado financeiro
e lembrar uma coisa simples: “os salários são o componente
mais importante para a demanda privada e o capitalismo não funciona
sem aumento do salário dos trabalhadores”.
Flassbeck,
professor da Universidade de Hamburgo, que classifica como ridículas
as agências de risco, estará no Brasil na próxima semana para um
seminário promovido pelo Centro Internacional Celso Furtado.
Como
o sr. avalia o rebaixamento dos EUA pela S&P?
Essas
agências de risco estão ficando cada vez mais ridículas. No final,
se pode dizer que o mundo todo está indo à bancarrota, contra
Vênus, Marte, a Lua. O maior, o mais importante e o mais sólido
Estado do mundo sob perigo de quebra! Então tudo pode quebrar! E
daí? O que isso muda? É ridículo.
E por que as agências
são tão valorizadas?
Não sei, porque a maioria das pessoas
é maluca (risos). Algumas pessoas nas agências de risco decidem
sobre o destino da economia mundial. Como se pode tomar isso
seriamente? Estamos indo para uma recessão e o que precisamos é de
deficits maiores para os governos, para que possamos sair da
recessão. E para as agências não se pode fazer essa coisa
razoável. O que fazer então? Não se deve acreditar em Deus, mas
nas agências de classificação de risco e fazer o que elas pedem,
mesmo que seja tolo? É uma piada, mas muitas pessoas levam a sério.
Os governos deveriam rebaixar as agências?
Sim,
eles deveriam dizer: “esqueçam isso, essas pessoas ridículas”.
[O presidente dos EUA, Barack] Obama deveria ter dito que não se
importa nenhum pouco com essas pessoas ridículas das agências de
risco.
Qual a verdadeira natureza da crise atual?
Os
mercados produzem bolhas e, em certo momento, todas as bolhas
explodem. Nós temos uma economia de bolhas. A economia cresce porque
temos essas bolhas, não o contrário. Não há bolhas por causa do
crescimento, mas há crescimento por causa das bolhas.
Nada
mudou nos mercados financeiros desde a crise de 2008, mas todos
estavam felizes por causa da aparente recuperação; os bancos
estavam tendo lucro novamente. Mas todos os lucros dos bancos, pelo
menos nos países industrializados, eram apenas resultado das novas
bolhas.
O que acontece agora e que há um grande perigo de
que todas as novas bolhas –de commodities, moedas, ações,
patrimônio– estourem em algum momento e os bancos ficarão com a
mesma dificuldade de 2008.
O problema está ficando pior?
Está ficando pior, pois agora todos os governos estão tentando
reduzir os seus deficits, 15% a 20% maiores em comparação com a
última crise. Por isso será mais difícil para eles lutar contra
uma nova recessão. Assim, há um nervosismo maior.
A
turbulência tem a ver apenas com o medo de recessão?
Há um
grande perigo de uma recessão mundial. Nos EUA, na Europa e no Japão
(60% a 70% do PIB mundial) não temos recuperação sustentável: o
emprego está estagnado, os salários não estão subindo, então não
há consumo privado, e todos querem exportar. O resto do mundo não
consegue crescer em ritmo suficiente para absorver essas exportações.
Não funciona.
Nos últimos 30 anos a agenda neoliberal nos
fez acreditar que tudo deveria ser flexibilizado: o mercado de
trabalho, o sistema inteiro. Mas agora está tudo tão flexível que,
quando o desemprego cresce como EUA e os salários caem, a economia
não se recupera. Essa nova flexibilização vai matar a economia de
mercado.
E qual é saída?
É preciso fazer uma
forte regulação nos mercados financeiros: não permitir que os
bancos façam o jogo de apostas de cassino, forçar os bancos a
fazerem investimentos reais. Precisamos de um sistema monetário
global totalmente diferente, no qual as moedas não sejam
determinadas pelo mercado. Precisamos de uma nova regulamentação
global para as commodities, na qual os seus preços não sejam mais
determinados pelo mercado financeiro.
Os bancos manipulam
preços de commodities e de moedas, como o real, nos mercados
financeiros para ganhar dinheiro nos próximos dois, três anos. Não
estão interessados em crescimento de longo prazo. Isso precisa ser
mudado.
Por que os governos não fazem nada a respeito?
Muitos políticos não entendem o que realmente está
acontecendo. Acham que gestores de bancos possam ser conselheiros de
políticos. Isso não funciona. Os políticos precisam se emancipar
disso. Precisamos de uma geração diferente de políticos, que não
dependa do dinheiro de Wall Street e que pense no melhor para a
população.
Os mercados estão forçando um novo resgate
com dinheiro público, socialização das perdas?
Com a
situação política nos EUA, é muito difícil imaginar que eles
fariam um novo resgate. O governo está totalmente bloqueado pelo
Congresso. Muitos governos vão hesitar em salvar os bancos. Por isso
essa recessão pode ser pior e mais profunda do que a anterior.
O
cenário mais provável talvez seja o de uma recessão japonesa, com
estagnação geral, deflação. Demorará mais até que os governos
comecem a entender que eles não podem continuar salvando e salvando.
Mas que devem levar em conta o que acontece na economia real. A
ideologia dominante diz que os governos são ruins e os mercados são
bons. E, enquanto se acreditar nessa coisa primitiva, não vai
funcionar
E os países em desenvolvimento?
Até
estão indo bem, crescendo, mas não têm tamanho suficiente para
tirar o mundo do atoleiro. Eles dependem dos países industrializados
também. Podemos ir para uma fase longa de estagnação e deflação
como o Japão nos últimos 20 anos. É o maior perigo.
Uma
recessão pior do que a de 1929?
Eu não diria pior, mas pelo
menos comparável. Da última vez, a recessão foi contida por causa
da reação rápida dos governos. Mas agora não se pode esperar
muito das políticas monetárias. Precisa ser do lado da política
fiscal, mas ela está bloqueada politicamente. Isso é que deixa a
situação tão difícil. Veja o Japão nos últimos 20 anos: sempre
que o governo tentou cortar o deficit, a crise se aprofundou e o
deficit aumentou. Assim, o Japão alcançou a maior dívida pública
do mundo: mais de 200% do PIB.
Essa recessão seria mais
parecida com a 1929 ou com a do final do século 19, que significou a
queda do Reino Unido e a ascensão dos EUA e da Alemanha?
Mais
com 1929, pois estamos em perigo de fazer o mesmo erro, cortando
gastos públicos no meio de uma recessão.
Mas há
economistas ortodoxos que argumentam que os governos deveriam cortar
o deficit, que a crise significa o fim de uma era de keynesianismo?
Keynes foi recém recuperado e agora estão ansiosos por matá-lo
novamente. Por isso eles chamam a crise, que foi claramente causada
pelos mercados financeiros internacionais e não pelos governos, de
“crise da dívida dos governos”, “crise da dívida”.
Não tem nada a ver com crise da dívida. Os governos pagaram alguns
jogadores absolutamente irresponsáveis do mercado financeiro e por
isso a dívida dos governos é maior do que há cinco anos. Não há
outra razão, não há mau comportamento de governos.
Está
claro que economistas ortodoxos não gostam da ideia de que os
mercados não tiveram um bom comportamento, que fizeram coisas
erradas, porque os mercados são Deus e estão sempre certos. Eles
vêm com a explicação de que é só problema dos governos, não tem
nada a ver com os mercados, que não existe mau comportamento dos
mercados, que a culpa é só dos governos. É uma luta ideológica
contra os governos. Querem trazer os governos para baixo, enriquecer
eles próprios, sei lá. Não tem nada a ver com pesquisa acadêmica
séria.
O que o capitalismo pode fazer para gerar
crescimento no mundo?
A coisa mais simples e mais crucial é
que os salários médios das pessoas, dos trabalhadores precisam
subir em linha com a produtividade da economia. É uma regra simples,
que não é seguida em muitos países. Não foi seguida na América
Latina no passado; hoje está melhor. Na Ásia eles entenderam isso,
e os salários estão crescendo. Mas na Europa, nos Estados Unidos e
no Japão, os salários não estão crescendo. Isso não funciona, os
salários são o componente mais importante para a demanda privada. O
capitalismo não funciona sem aumento do salário dos trabalhadores.
O tamanho sistema financeiro nos próximos anos deve ficar
menor?
O sistema financeiro precisa encolher. É a grande
tarefa que os políticos têm: encolher o sistema financeiro para um
tamanho que seja razoável, que tenha relação com a economia e que
tire o sistema do cassino.
Qual sua avaliação do
movimento no mercado europeu de no nesses dias?
O BCE (Banco
Central Europeu) fez uma coisa razoável, comprando títulos
italianos e espanhóis. Mas isso não pode ser feito por muito tempo.
No longo prazo, a única solução para a Europa é que a inflação
alemã e os salários subam mais e as outras inflações declinem,
fazendo com que o grande desnível entre competitividades dos dois
grupos de países diminua no decorrer do tempo.
Como está
a situação na Europa?
Ainda não resolvemos o problema
principal da zona do euro que é a diferença de inflação entre a
Alemanha e os países do sul da Europa. A Alemanha se recusa a
aceitar que esse é o principal problema por razões políticas. Sou
cético que de haja uma solução. Mais países vão entrar em
dificuldades Itália e Espanha estão estagnadas, e se pede cortes de
gastos governamentais. É maluco.
Se não há crescimento e o
governo corta gastos e aumenta impostos isso leva à recessão. A
Grécia não reduziu o deficit não porque não desejava, mas porque
entrou numa recessão muito mais profunda do que o esperado. As
receitas de impostos caíram e o deficit não pode ser reduzido.
Muitos dizem que a Itália e a Grécia gastaram de mais e,
por isso, estão sendo punidas. Qual sua visão?
A moeda na
Europa tem uma regra simples: é que todos devem ter a mesma inflação
de 2%. Mas nos últimos dez anos a Alemanha teve uma inflação de
1%, e Espanha, Portugal, Grécia, Itália tiveram uma inflação em
torno de 2,5%. Quem fez certo e quem fez errado? Alguns viveram
acima, outros abaixo da meta. Não há como culpar um lado. A
Alemanha violou a meta de 2% mais do que Grécia, Espanha, Portugal e
Itália. Isso não é discutido seriamente porque a Alemanha faz um
jogo de poder contra os outros países e tenta impedir essa
discussão.
Qual sua visão do Brasil?
Acho que o
Brasil está muito melhor agora do que em recuperações anteriores.
Os salários estão crescendo. O que continua sendo um problema é a
taxa de juros muito alta e a valorização do real é um grande
perigo. Mas não há como culpar o Brasil: é o jogo do poder.