Avançam na América Latina iniciativas de privatização da água

Deixem em paz
meu coração / que ele é um pote até aqui de mágoa / e qualquer
desatenção, faça não / pode ser a gota d’água”, dizia Chico
Buarque, em uma de suas músicas. Assume, na canção, a persona
feminina, como costuma fazer em alguns de seus lances mais geniais.
Hoje, os versos bem poderiam representar o sentimento de comunidades
tradicionais diante do avanço de grandes corporações e agências
sobre o recurso natural. Mais estratégica que petróleo e
eletricidade, e em crescente escassez, a água é fonte de
preocupação de grupos econômicos por todo o mundo – e, por
consequência, de seus vassalos agrupamentos políticos. A
privatização do recurso avança em alguns países da América
Latina e do mundo todo. Nos movimentos sociais e ongs progressistas,
fixa-se a percepção de que resistir ao avanço liberal sobre a água
significa, hoje, resistir à própria sobrevivência do atual modelo
econômico predominante.

Nos últimos dias 20 e 21 de julho, o Rio de
Janeiro recebeu o seminário “Panorama político sobre estratégias
de privatização da água na América Latina”. Organizado pelo
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), contou com a
participação de 120 pessoas de 50 organizações. Entre eles,
representantes de 13 países, a maioria da América Latina. O fórum
serviu como perfeito termômetro do avanço da privatização da água
no subcontinente e nos países centrais – embora, em algumas
localidades, haja recuo. Entre os principais debatedores, um conceito
se demonstrou quase consensual. O capitalismo mundial vive uma crise
social, econômica e ambiental, e busca se reconfigurar para
sobreviver – como sempre ocorre em momentos de impasse do capital.
Dessa vez, no entanto, o labirinto é tão grande que o êxito não é
certo, e o sistema pode ruir. Pode ser a gota d’água.

O principal objetivo do poder econômico seria
transformar a água em mercadoria internacional. Para isso, avançam
não somente sobre as reservas estratégicas – rios, lagos,
aquíferos – como também sobre os serviços de água. Qualquer
empreendimento relacionado a uma das duas possibilidades está
sujeito a se tornar propriedade privada. Para isso, a cooptação de
grupos políticos é regra mundial. O mercado elabora leis, tratados,
acordos que são legitimados em conferências e seminários
direitistas e viram legislação nos parlamentos dos países. Às
comunidades, resta adequar-se à força. Os relatos também dão
conta de que a escassez e as secas servem de argumento ao capital
para impor suas soluções.

Elemento estratégico – Corporações
dos mais diversos ramos econômicos estabeleceram, muitas vezes de
forma declarada, a água como elemento estratégico. O avanço se dá
como em lances de xadrez. Empresas como a Nestlé, a Coca-Cola, a
Vale, a Odebrecht e a Camargo Correa deixam clara em sua movimentação
a preocupação com o controle do recurso – sobretudo no Brasil.
Maria Teresa Freitas, a “Teca”, fez longa exposição sobre o
avanço da Vale sobre a Serra do Gandarela. Trata- se de uma região
de Minas Gerais farta em água. “A empresa quer fazer lá seu
segundo maior empreendimento, depois de Carajás. Admitem, no EIA
(Estudo de Impacto Ambiental), que querem substituir outros lugares
‘em fase de exaustão’. É o último reduto de recursos do estado
de Minas. Minério não se bebe”, protesta.

O documento oficial do seminário é sintético e
claro. “Neste momento percebemos movimento intenso de apropriação
da água no saneamento, na geração de hidroeletricidade, no agro e
hidronegócio, nos processos industriais e mineração, nas
transposições, nas concessões dos rios e lagos, na apropriação e
comercialização das reservas de águas minerais”, diz. Mesmo os
países de governo progressista ou de esquerda enfrentam o problema.
Houve relatos de insegurança hídrica e avanço do mercado em
regiões de países como Bolívia e Equador. Isso se deve, sobretudo,
segundo os participantes do seminário, porque os movimentos
econômicos estão submetidos a uma rede global.

No saneamento, a estratégia se dá de forma
específica, comprovando um sentimento crescente – as privatizações
não se dão apenas através da tradicional desestatização. As
empresas do setor têm buscado a capitalização através de abertura
de capital, além de terceirizar ramos das atividades. Também buscam
estabelecer parcerias público-privadas. “Independente da
privatização, o setor privado vai estar em todos os ramos. As
terceirizações, por exemplo, que reduzem a qualidade do serviço
prestado, são cada vez mais frequentes”, defendeu Edson Aparecido
da Silva, da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU-CUT), que
apresentou ricos dados sobre a água no país.

Impacto do agronegócio – É
consenso que o agronegócio é o principal responsável pela
contaminação da água em diversos países, ao lado do hidronegócio.
No Brasil, a agroindústria busca terras localizadas próximas das
reservas, superficiais e subterrâneas. Ao mesmo tempo que é o
recordista mundial de consumo de agrotóxicos, o país também contém
27% da água doce do planeta. O resultado é simples questão de
relacionar os dois elementos – boa parte da reserva hídrica
mundial está sendo crescentemente comprometida. “A análise dos
dados confirma o que temos debatido. Temos a consolidação da
incorporação completa da vida à lógica de mercado. O desafio é
romper essa lógica”, defende o mexicano Gustavo Castro.

A construção de hidrelétricas, sobretudo na
América do Sul, também é um fator de preocupação. No Brasil, há
o avanço sobre os grandes rios amazônicos, em outros momentos
impensável. Nos países fronteiriços, atuam as mesmas empresas
brasileiras, protagonistas, aqui, da preponderância do modelo.
Muitas vezes, pressionam governos locais para a adoção de
hidrelétricas, supostamente menos poluentes. Contam, para isso, com
o suporte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), que estimula não só essa política como a criação de
grandes corporações brasileiras. Recém eleito presidente do Peru,
Ollanta Humala tem se esforçado por frear o avanço desregulamentado
de algumas empresas brasileiras em seu território. “Foi firmado,
agora, um acordo energético entre os dois países. Estamos atentos”,
avisa Rômulo Torres, do Fórum de Solidariedade do Peru.

Estas estratégias, coincidentes em países
distintos, são elaboradas por intelectuais ligados ao Banco Mundial
e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Mesmo após o fracasso da
devastação neoliberal, as organizações estariam recuperando
prestígio ao moldar suas políticas com um falso verniz
progressista. Há desconfianças de que existiria a intenção de
transformar a água em commodity, com o preço unificado
internacionalmente, proposta já apresentada pela Nestlé. Nada
animador é o saldo da privatização já efetivada: baixa qualidade
dos serviços, zonas de exclusão, tarifas elevadas, diminuição da
produção de alimentos pela dificuldade de acesso, contaminação.

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