Brasil tem 300 milhões de hectares cercados, diz professor da USP

Ao
retomar os rumos da reforma agrária no Brasil, o professor de
Geografia Agrária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Ariovaldo Umbelino
de Oliveira alerta para os 300 milhões de hectares de terra que
estão “cercados” no Brasil. “Quem cercou não tem documento
para provar a propriedade da terra”, afirma o especialista sobre o
número elevado de concentração de terra hoje no país.

Em
entrevista ao Vermelho, Oliveira destaca a repressão sofrida pelos
movimentos sociais que tentaram defender e pautar o tema da
redistribuição fundiária em áreas rurais no país. Ele lembra que
desde a época da libertação dos escravos ninguém recebeu alguma
forma de indenização.
O especialista enfatiza que hoje o
direito à terra está submetido à função social, o que, segundo
ele, dá outro sentido à reforma agrária. “A terra deve ser
produtiva, deve-se ter respeito pela legislação trabalhista e
ambiental e não deve haver o cultivo de drogas”, ressalta.

Em
relação à nova dinâmica estabelecida nas áreas rurais, Oliveira
ressalta que a realização da reforma ainda é necessária ao país.
“Temos que retomar o segundo sentido da reforma agrária. Ela tem
de cumprir sua função social”. Mas, para ele, ainda há muitos
desafios pela frente, como a superação das implicações do estilo
de modernização adotado e a questão da violência no campo. “A
modernização da agricultura foi feita de maneira conservadora.
(…) As elites usaram a violência contra o campo, e impediram ‘a
bala’ o acesso à terra”.

O especialista também contesta
o ministro do Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence, que, em
declaração recente afirmou que “a reforma agrária não se presta
à luta política, mas à produção rural”. Para Oliveira, os
movimentos sociais “são os principais atores dessa história”.

Ele lembra que o governo Lula não cumpriu a meta de
assentamentos estabelecida no 2º Plano Nacional de Reforma Agrária.
Segundo o especialista, o governo Dilma “retirou o tema da reforma
agrária da agenda política e substituiu pelo Programa de
Erradicação de Extrema Pobreza”. Confira abaixo a entrevista.

Vermelho: Como teve início o debate pela reforma agrária
no Brasil?

Oliveira: Há dois sentidos pelos quais se travou o
debate da reforma agrária no Brasil. O primeiro ocorreu entre as
décadas de 1940 e 1960. Nesse período, a reforma se coloca como uma
estratégia de desenvolvimento econômico – quase a única
alternativa para alavancar o desenvolvimento capitalista, uma vez que
quase toda a população brasileira estava concentrada nas áreas
rurais. Os partidos de esquerda viam na reforma agrária uma
estratégia para minar o poder do latifúndio e abrir possibilidades
para uma eventual transformação socialista do país.
A reforma
agrária era uma alternativa de alteração estrutural do regime de
concentração de terras. Isso fica claro na literatura produzida na
época. Era o caminho para a revolução socialista. Além do cunho
ideológico, havia também o sentido econômico que ajudou a
impulsionar o desenvolvimento interno.

Vermelho: Em quais
contextos históricos o Brasil já teve oportunidade de promover a
reforma agrária?

Oliveira: O pano de fundo para o primeiro
debate efetivo sobre a questão da luta pela terra veio com o
movimento das Ligas Camponesas. Depois disso, o governo do João
Goulart criou a Superintendência da Política Agrária, com a qual
pretendia alterar a Constituição de 1946 – que já previa a
desapropriação com finalidade social. Jango pretendia mudar esse
artigo, de modo que o pagamento fosse feito em títulos da dívida
agrária.
Mas toda essa proposta foi “para o vinagre” com o
golpe militar de 1964. Então, o mesmo governo que combateu as Ligas
Camponesas criou, em novembro de 64, o Estatuto da Terra. O então
ministro do Planejamento, Roberto Campos, dizia que o governo criaria
a lei, mas não chegaria a implantá-la. Ou seja, a lei foi feita
para não ser implantada.
O instrumento do governo para implantar
a reforma agrária é o Plano Nacional de Reforma Agrária, que só
foi feito no governo Sarney em 1985. Não por vontade do Sarney, mas
por causa de um acordo que o Tancredo Neves tinha feito com o Papa
(João Paulo II), que o obrigava a levar adiante o 1º Plano Nacional
de Reforma Agrária. A proposta era assentar um milhão e 200 mil
famílias. Foram assentadas, no máximo, 110 mil.
O segundo
momento histórico de grande importância aborda o sentido da reforma
que está no Estatuto da Terra. O direito à propriedade da terra
está submetido ao direito da função social, e isso dá um segundo
sentido a reforma agrária.

Vermelho: Que fatores
históricos levaram a classe camponesa a ser marginalizada?

Oliveira:
O que tenho como tese é que a formação da propriedade de terra no
Brasil não se fez pela compra da terra, mas, sim pela grilagem da
terra pública. De acordo com a legislação de distribuição de
terra de Portugal, as sesmarias, a posse de terra era crime e
continuou sendo considerado assim durante todo o período colonial.
Era ilegal ocupar a terra através da posse, mas acabou se tornando
algo recorrente no Brasil. Toda a ação das elites rurais sempre foi
na contramão da lei.
Mais tarde, em 1850, o artigo segundo da Lei
de Terra criminaliza a posse e exige indenização por qualquer
devastação provocada. A Lei de Terra legalizou a grilagem, aceita
até então. No artigo quarto e quinto, a Lei da sesmaria foi
regularizada e, assim, qualquer tipo de posse de terra foi
regularizada. Mas, se voltarmos ao período colonial, quem se
beneficiou com a sesmaria foi apenas a elite do país.

Após a
libertação dos escravos, nenhum deles foi indenizado de alguma
forma. A lei de terra evitou que os escravos tivessem acesso a ela,
porque a terra só poderia ser adquirida pela compra e venda – o
que criou um impedimento para que os escravos libertados tivessem
acesso à terra. Porque a posse era proibida.

Vermelho: E
como evoluiu a questão da posse de terra nos anos seguintes?


Oliveira: O país chega ao início do século 20 com a maior
parte das terras ilegais. Em 1931, o Getúlio (Vargas), cria um
decreto-lei e passa a borracha no passado. Ele permite que todas as
terras desapropriadas sejam legalizadas. As terras eram medidas e
registradas em cartório. Em 1932, ele faz outro decreto-lei
proibindo a posse em terras públicas.
Com a Constituição de
1988, a posse é reduzida para 50 hectares. E, desde 1934, só é
permitida a posse laboral, aquela que vem da família que está lá
trabalhando na terra. Desde então, a posse que não for laboral não
tem como ser legalizada. Isso significa dizer que mais de 300 milhões
de hectares de terra no Brasil estão cercados, e quem cercou não
tem documento que prova a propriedade da terra. Só que, agora, temos
uma legislação que obriga a terra a cumprir a função social e que
está na Constituição. E essa função se cumpre por quatro itens.
A terra tem de ser produtiva, deve-se ter respeito à legislação
trabalhista e ambiental e não é permitido cultivar
drogas.

Vermelho: Quais são as principais implicações do
fenômeno de modernização da agricultura?

Oliveira: A
modernização da agricultura foi feita de forma conservadora,
mantendo a estrutura fundiária concentrada no país e com a mesma
violência que os movimentos sempre foram tratados no Brasil. Para
fazer essa modernização conservadora, as elites usaram a violência
contra o campo e impediram “a bala” o acesso à terra.
Só a
grande propriedade improdutiva ficou submetida à legislação. O uso
da violência é uma característica constante na história do
Brasil, basta ver como foram tratados os quilombos, Canudos,
Contestado, as Ligas Camponesas. É uma combinação de violência e
impunidade, utilizada pelas elites que fizeram essa tal modernização.

Vermelho: Qual modelo de desenvolvimento é ideal e viável
para não “aniquilar” pequenos agricultores?

Oliveira: A
modernização no Brasil não incluiu os pequenos, incluiu uma faixa
muito insignificante, através de políticas públicas em função do
cooperativismo. Por meio desse sistema, os pequenos conseguiram fazer
parte desse processo, com exceção das regiões onde existe um
interesse do capital em que o pequeno se desenvolva e seja o produtor
– como na avicultura e na suinocultura.
Não existe diferença
entre latifundiário rural e empresário. Ambos sempre tentam impedir
o acesso à terra e combater ferozmente os movimentos sociais. Eles
concentram 300 milhões de hectares que não são deles. É a forma
como a propriedade de terra se formou no Brasil que faz esse nó. As
elites fazem com que o Judiciário não cumpra a lei no
Brasil.

Vermelho: Atualmente, como o grande agronegócio
afeta a cadeia produtiva dos pequenos produtores?

Oliveira:
Essa expressão foi criada pelos ruralistas para esconder o que eles
são. São agricultores capitalistas – portanto, têm na atividade
agrícola o lucro e a sua fonte de riqueza. Qual é o interesse que
esse produtor tem em que os pequenos se desenvolvam? Nenhum. A ação
do capitalismo hoje é dos monopólios. A família Maggi tem mais de
40 mil hectares de terra. O agronegócio diz que quer integrar o
pequeno no discurso.
A propriedade da terra no Brasil precisa ser
esclarecida. Os monopólios internacionais estabelecem uma aliança
de classes com as elites capitalistas brasileiras e criam mecanismos
de subordinação. Com a exportação das commodities, os monopólios
internacionais fornecem produtos como calcário, adubo e sementes –
assim obrigam o produtor capitalista a voltar a produção para essas
empresas. São mecanismos de subordinação.

Vermelho: Que
tipo de reforma agrária ainda é necessária ao país?

Oliveira:
Temos de retomar o segundo sentido da reforma agrária e fazer com
que a terra cumpra sua função social. Precisamos questionar a
dimensão social da terra, o respeito a quem trabalha na terra, a
legislação ambiental e a obrigação de produzir alimentos sadios à
sociedade. Estamos produzindo produtos envenenados com agrotóxicos,
e a maioria dos cânceres tem origem no consumo de agrotóxicos.

Vermelho: Como a reforma agrária se reconfigura com a
nova dinâmica estabelecida no meio rural?

Oliveira:
Precisamos restaurar uma agricultura agroecológica, sem veneno. A
agroquímica não tem mais como aumentar a produtividade,
esgotaram-se todas as possibilidades aumento de produtividade.
Estamos vivendo a fase da agrobiologia. No entanto, esses grandes
monopólios entraram pelas portas dos fundos da agrobiologia, com o
controle das sementes – que sempre foram patrimônio da humanidade.
Quem inventou o milho? O milho não é invenção de laboratório.

Vermelho: Em entrevista ao Valor Econômico, o ministro do
Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence, afirmou que a “reforma
agrária não se presta à luta política, mas à produção rural”.
O senhor concorda com essa afirmação?

Oliveira: É um
equívoco essa frase. A reforma agrária tem que trazer outra
realidade, o acesso da terra ao campesinato sem terra. Esse
campesinato junto aos movimentos sociais são os principais atores da
história. Negar isso é negar o que de mais óbvio há na política
brasileira. O ministro sabe que, desde o segundo mandato do Lula, as
metas de reforma agrária não foram cumpridas.

O Incra divulga
dados de assentamentos que não são de reforma agrária, juntando
dados que são de regularização fundiária – do direito dos
posseiros, reconhecimento de assentamentos antigos – e isso não é
reforma agrária. Das 400 mil famílias que deveriam ser assentadas,
conforme a meta do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária, o governo
Lula assentou menos de 150 mil, mas divulgou que assentou 500 mil
famílias. Por isso, os conflitos de campo não param. O governo
Dilma retirou a reforma agrária da agenda política e substituiu
pelo programa de extrema pobreza.

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