Miguel
Pereira*
Especial para o Valor Econômico
Pode o BC
legislar sobre os correspondentes bancários? Seguramente não. No
Brasil não existe legislação específica sobre terceirização de
serviços ou de mão de obra, à exceção dos serviços de limpeza e
de segurança bancária. Por outro lado, existe toda uma legislação
trabalhista consagrada na CLT que define os conceitos de categoria
profissional, relação de emprego, natureza da atividade
profissional, dentre tantos outros.
A maior referência legal
nesse tema é a orientação jurisprudencial do TST (Enunciado 331),
que proíbe a terceirização nas atividades-fim das empresas,
admitindo-a apenas nas atividades-meio, desde que sejam de natureza
especializada. E definitivamente proíbe a contratação de pessoal
por meio de empresa interposta, classificando tal prática como
ilegal.
Atos relativos à concessão de empréstimos e
financiamentos bancários, abertura de contas, venda de cartões de
crédito, análise cadastral, processamento de dados, dentre tantas
outras operações tipicamente bancárias, acabam por autorizar a
terceirização ilegal de mão de obra.
Outro princípio
orientador da Justiça Trabalhista é o da Primazia da Realidade, ou
seja, valem as condições objetivas a que o trabalhador efetivamente
está submetido no seu dia a dia.
Ao editar as resoluções
estabelecendo a figura dos correspondentes bancários, o Banco
Central colide frontalmente com os artigos 2º e 3º da CLT e com
todos esses princípios fundadores do direito do trabalho, o que
obviamente vai provocar uma corrida de ações trabalhistas.
Tais
resoluções acabam por criar normas de direito material do
trabalho
Tais resoluções, que aparentemente dizem respeito
ao funcionamento do mercado financeiro, acabam por criar normas de
direito material do trabalho ao autorizar a terceirização dos
serviços bancários. E é evidente que o BC extrapola sua
competência legal ao fazê-lo, uma vez que é atribuição exclusiva
do Congresso Nacional legislar sobre direito do trabalho (Art.22,I
C.F./88).
Outra questão importante é saber por que a rede
convencional dos bancos não está prestando esses serviços
elementares aos clientes e usuários, uma vez que atuam na forma de
concessões públicas?
Dos 5.587 municípios brasileiros,
1.973 (35,3%) não possuem sequer uma agência ou posto de
atendimento bancário, segundo dados do BC de 31 de março deste ano.
Pior: o Brasil tem menos agências bancárias hoje (19.908) atendendo
a população do que tinha em 1990 (19.996).
A figura dos
correspondentes bancários, que foram idealizados em 1973 (Circular
nº 220 do BC), tinha a característica de um banco ser
correspondente de outro para a execução de ordens de pagamento e a
cobrança/recebimento de títulos. Só que naquela época os bancos
brasileiros não tinham a configuração de presença e concentração
que existe hoje. Em 1999 foi editada a Resolução nº 2.640/BC, que
apesar de ampliar o rol dos serviços prestados, determinava que esse
funcionamento somente era autorizado para as praças onde não
houvesse a presença de bancos.
Gradativamente esse papel veio
sendo desvirtuado pelos bancos, que se apropriaram desse mecanismo
para segmentar sua clientela e utilizá-los com o propósito tão
somente de redução de seus custos, promovendo uma verdadeira
segregação no tratamento dado a clientes de maior e menor
renda.
Os números que o BC apresenta para comemorar o êxito
do programa, de que há cerca de 160 mil correspondentes bancários
(2009), também podem ser tomados como a medida exata do fracasso do
sistema bancário brasileiro no que diz respeito ao cumprimento de
uma política pública de crédito e relação de consumo decente
entre bancos e sociedade.
Mas que dados estatísticos
qualitativos pode o BC apresentar para defender socialmente a atuação
dos correspondentes bancários? Cerca de set milhões de novas contas
simplificadas? Mas quase todas são da Caixa Econômica Federal, a
maioria das quais para o pagamento de benefícios sociais. Pelos
milhões de pagamentos dos benefícios sociais da previdência
social? Ora, outros meios poderiam ser adotados, como por exemplo a
obrigatoriedade de instalação de agências pioneiras ou postos de
atendimento bancários.
O BC está legislando a precarização
do trabalho, não apenas o bancário, também o dos comerciários. E
mais que isso, estabelecendo um padrão de exploração e
consequentemente aumentando ainda mais a concentração da renda
nacional.
À medida que as últimas Resoluções 3.954 de
24/02/11 e a 3.959 de 31/03/11 autorizam os bancos a terem seus
próprios correspondentes, ampliando ainda mais a gama de serviços
ofertados, está em curso uma gradativa substituição do atendimento
convencional nas agências por essa nova figura, chamada
correspondentes, agora autorizados a integrar a estrutura societária
dos bancos.
Com essas resoluções, o BC autorizaria até
mesmo a terceirização de responsabilidades como o sigilo bancário,
uma vez que o correspondente poderá coletar informações cadastrais
e de documentação, bem como o controle e processamento de dados.
E
ignora solenemente a Lei nº 7.102, que trata da exigência do mapa
de segurança das agências bancárias, condição sine quo non para
o funcionamento bancário.
Condições básicas do Direito do
Consumidor, que atualmente já são alvo de registros de denúncias
nos Procons e no próprio BC são autorizados a serem repassados para
terceiros.
O mais interessante nesse debate é que a
Constituição Federal assegura o valor social do trabalho e o trata
como um dos valores estruturantes da sociedade brasileira.
Infelizmente, essas normas só beneficiam os bancos, em detrimento
dos interesses da sociedade.
* Miguel Pereira é secretário
de Organização da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo
Financeiro (Contraf-CUT)