A fome e as finanças: um retrato da desigualdade

Atualmente, a população
mundial conta com mais de 6,8 bilhões de
pessoas. De acordo com dados da ONU e seu órgão para Agricultura e
Alimentação (FAO), 925 milhões desse total passam fome. Trata-se de um
contingente equivalente a 5 vezes o total da população brasileira! Além
disso, vale registrar que as crianças são as que mais sofrem com tal
quadro. Quase um terço das crianças nascidas no chamado Terceiro Mundo,
ou seja, 180 milhões, apresentam problemas de desenvolvimento físico e
intelectual em razão de problemas de subnutrição nos primeiros 5 anos
de vida. O artigo é de Paulo Kliass.

Uma
das armadilhas mais perigosas quando se analisam questões macro e de
grande amplitude, como é o caso da fome no mundo, reside na tendência a
considerar tais fenômenos como “fatalidades”, processos profundos e de
longuíssimo prazo, praticamente sem solução à vista. Aquela estória de
que “esse quadro está aí desde que o mundo é mundo” e por aí vai. Como
os avanços não ocorrem no curto prazo e também não existem instrumentos
efetivos de decisão no plano internacional, a coisa vai sendo empurrada
com a barriga e a situação dramática continua a afetar a vida de boa
parte da população do mundo.


A Declaração Universal dos Direitos
Humanos determina em seu Artigo 25, entre outros princípios, que toda
pessoa “tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (GN). No
entanto, a realidade está bem distante desses direitos básicos, em
especial no que se refere à questão da fome.


Os números são
realmente chocantes e o que mais impressiona é a passividade das elites
políticas por todos os cantos do planeta, que pouco se movimentam na
busca de soluções efetivas. A grosso modo, elas estão ausentes, seja no
plano local, nacional, regional ou global. Na verdade, o Brasil é um
dos poucos exemplos onde políticas públicas foram implementadas pelo
Estado com algum grau de seriedade e resultados. Nesse quesito, desde o
Comunidade Solidária e os sucessores Bolsa Família e Fome Zero, os
programas governamentais brasileiros têm sido uma referência para os
que se preocupam com o tema pelo mundo afora.


Atualmente, a
população mundial conta com mais de 6,8 bilhões de pessoas. De acordo
com dados da ONU e seu órgão para Agricultura e Alimentação (FAO), 925
milhões desse total passam fome
(1). Trata-se de um contingente
equivalente a 5 vezes o total da população brasileira! Além disso, vale
registrar que as crianças são as que mais sofrem com tal quadro. Quase
1/3 das crianças nascidas no Terceiro Mundo, ou seja, 180 milhões,
apresentam problemas de desenvolvimento físico e intelectual em razão
de problemas de subnutrição nos primeiros 5 anos de vida. Pior ainda, a
fome é responsável por 35% dos óbitos de crianças nessa faixa etária.


A
distribuição regional do mapa da fome reforça ainda mais os aspectos da
profunda desigualdade sócio-econômica em escala internacional. A
absoluta maioria da população que passa fome está concentrada na Ásia e
na África Subsaariana – ali estão 88% desse quase 1 bilhão de pessoas.
A título de comparação, a América Latina e Caribe contêm 6% e os países
desenvolvidos apenas 2% desse total.


Parece estar mais do que
comprovado que a sociedade contemporânea tem plenas condições
tecnológicas e econômicas de resolver esse drama. Assistimos a uma
contínua e impressionante elevação nas taxas de produtividade em geral,
inclusive no domínio da agropecuária. Existem terras agriculturáveis
espalhadas pelos vários continentes. A questão, como sempre, esbarra
nos problemas de ordem política e dos interesses econômicos existentes
por trás dos governos, a orientar as políticas públicas na perspectiva
do lucro privado e não no atendimento das necessidades da maioria da
população.


A mercantilização generalizada e a
crescente
financeirização de todas as atividades em escala global podem
contribuir para a explicação de tal comportamento. O desenvolvimento
das atividades agrícolas e pecuárias – a base para a alimentação do ser
humano – orienta-se como um setor a mais no extenso menu das opções
oferecidas pelo mundo capitalista. Ao serem tratados apenas como
mercadoria, itens como arroz, trigo, carne, soja, milho, dentre tantos
outros, perdem a sua característica essencial e primeira. Qual seja, a
de satisfazer uma das mais essenciais carências dos indivíduos em
sociedade – alimentar-se.


A subordinação de tais necessidades
sócias básicas à lógica da geração de lucro e da acumulação do capital
provoca distorções graves, uma vez que as razões para produzir ou não
tal alimento, para investir ou não na agropecuária em tal região, saem
da esfera da política pública para a lógica do empreendimento privado.
Ou, ainda que apoiada por algum mecanismo estatal (como nos casos de
fortes subsídios concedidos nos países desenvolvidos), a lógica
permanece restrita aos interesses daquele País e não leva em
consideração as necessidades da alimentação da população em escala
mundial.


Dessa forma, a dinâmica de
preservação dos níveis de
miséria e de desigualdade se mantém tanto nos sistemas políticos
injustos e excludentes nos planos local e nacional, quanto no modelo
desigual da distribuição da riqueza entre os países. As falsas
desculpas de que as condições para produção agrícola e pecuária, em
escala global, são insuficientes para atender ao crescimento
populacional não se sustentam.


A História e importantes
pesquisadores, como o brilhante brasileiro Josué de Castro
(2)
, se encarregaram de mostrar que as hipóteses de Malthus estavam
equivocadas. O ritmo de crescimento da população tem diminuído, a
capacidade potencial de produção de alimentos tem crescido de forma
significativa e mesmo assim a fome atinge um enorme contingente de
indivíduos. E o mais grave: segundo os dados da própria ONU, 80% das
pessoas que passam fome vivem em regiões e trabalham em atividades
ligadas ao campo ou à pesca. Ou seja, numa perspectiva planetária, o
problema não se restringe apenas aos movimentos migratórios do campo
para as cidades, que estariam a explicar as dificuldades com a
alimentação.


Por outro lado, a ampliação
descontrolada das
opções financeiras introduz uma dificuldade suplementar na dinâmica das
atividades agropecuárias. Aos já existentes e antigos movimentos de
especulação com os estoques de produtos e a manipulação de seus preços
nos mercados nacionais e internacionais, veio somar-se a criação de
títulos financeiros que se autonomizaram em sua dinâmica de
comercialização e negociação. Isso significa dizer que tais papéis
perderam toda e qualquer relação com a atividade produtiva do bem que
leva impresso em seu nome – café, soja, carne bovina, trigo, milho. A
criatividade do mercado financeiro em busca de novas alternativas de
ganhos e movimentação passa a oferecer, assim, promessas de compra ou
venda futura de toneladas de um ou outro produto. É o que o financês
chama de “mercado a termo”, o mercado futuro de “commodities”. Outros
ainda simplesmente operam títulos de cotação de preços de tais bens
primários no horizonte de meses ou mesmo de anos. A opção pelo tipo de
aposta “altista” ou “baixista” fica por conta do freguês…


O
movimento especulativo sem controle dos órgãos governamentais ou dos
organismos multilaterais tende a criar situações insustentáveis do
ponto de vista da realidade da economia. Os papéis são lançados,
comprados, vendidos, revendidos, de tal forma que o movimento só se
sustenta nessa ilusão da dinâmica do mercado em movimento. Caso alguém
resolva parar a roda da ciranda financeira por um instante, vem à tona
a crise como a que o mundo conheceu recentemente. Tudo não passava de
um conto de fadas. Os papéis viraram pó. Isso porque os mercados
financeiros no mundo todo giram diariamente quantias de toneladas
virtuais estupidamente superiores à capacidade efetiva dos países
produzirem aquele volume de produtos agropecuários. Pura bolha, toda
recheada de ar!


Outro aspecto agravante
relaciona-se ao fato de
que as atividades realizadas no campo cada vez mais se distanciam de
sua função precípua. A lógica de “atender à demanda” provoca distorções
estruturais no sistema, às quais acabamos por nos acostumar, nesse
perigoso comportamento da passividade. Nos Estados Unidos, por exemplo,
estima-se que 40% da área plantada pelo milho destinam-se à produção de
etanol. No caso brasileiro, sabe-se que boa parte da soja plantada e
exportada é destinada à produção de ração animal. Os programas todos de
substituição energética das fontes de combustível por fontes renováveis
plantadas (como o nosso etanol e biodiesel) carregam em seu interior
também essa contradição. São superfícies consideráveis de terras a
produzir bens agrícolas que não se destinam a resolver o problema
crucial da fome.


O ponto a ressaltar é que, desde
haja vontade
política e um pacto entre os principais países do planeta, não é muito
difícil resolver a questão da fome nos tempos de hoje. Idéias e
propostas não faltam. Porém, todas elas envolvem o debate de natureza
redistributiva da renda e o reconhecimento da necessidade de uma ação
reguladora sobre os chamados agentes econômicos para buscar a solução.
Assim, observa-se uma enorme resistência por parte dos que detêm
posições de comando e decisão no mundo político e empresarial.



comentei aqui a respeito da Taxa Tobin e da “Associação para a Taxação
das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos” (ATTAC)
(3).
Pois bem, trata-se da idéia do economista James Tobin e transformada em
movimento internacional pela entidade no final da década de 1990. A
proposta é de criar uma espécie de imposto sobre as operações
financeiras internacionais, que seria destinado à constituição de um
fundo internacional para erradicação da fome e da miséria no mundo.
Apenas a título de ilustração, caso fossem atingidas apenas as
operações cambiais e com uma alíquota irrisória de 0,005%, seriam
arrecadados por volta de US$ 30 bilhões anualmente. O mundo financeiro
resiste heroicamente. Mas não hesitaram um segundo em solicitar as
centenas de bilhões de dólares destinados aos bancos e às grandes
empresas transnacionais à beira de falência desde 2009 até hoje.


É
também bastante antiga a proposta de constituição de fundos
internacionais voltados a controlar os estoques reguladores de
matérias-primas e produtos agrícolas em escala internacional.
Concebidos para serem operados na forma de uma gestão compartilhada no
interior de organismos multilaterais, tais instrumentos poderiam servir
como anteparo de proteção aos movimentos especulativos nos mercados de
tais produtos, além de permitir ações coordenadas em momentos de
escassez de oferta causados por tragédias naturais.


Ganham força
também nos espaços de debate, e mesmo na esfera diplomática, as
propostas de maior regulação e fiscalização de instrumentos financeiros
especulativos, em particular na área das “commodities”. Os bancos, as
bolsas de mercadorias as demais instituições financeiras passariam a
ser mais controlados e as distorções de natureza especulativa, que
prejudicassem o atendimento das necessidades mundiais de produtos
alimentícios, seriam coibidas. Esse tema já está na pauta do G-20.


Deveriam
também ser fortalecidos os programas de reforma agrária e de
agricultura familiar em todo o mundo, como forma de aumentar a oferta
de bens alimentícios de utilização efetiva, além de estimular a fixação
das famílias no campo e reduzir o luxo migratório para os ambientes
urbanos. Ao mesmo tempo, poderiam ser implementadas medidas de estímulo
à produção de alimentos, ao invés de utilização de terras para outros
fins.


Enfim, é
evidente que a solução da tragédia da fome passa
por uma vontade política efetiva por parte dos tomadores de decisão no
mundo contemporâneo. E que o universo financeiro teria uma grande
contribuição a fornecer para reduzir esse e outros níveis de
desigualdade atualmente existentes.


NOTAS

(1) Ver: http://www.fao.org/docrep/013/i2050s/i2050s07.pdf

(2)
Ver: http://www.josuedecastro.com.br/port/index.html

(3)
Ver: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4718

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