A comida não pode ser barata?

Os conceitos de “soberania
alimentar” e de
“segurança alimentar”, capazes de dar sustentação a direitos
fundamentais de todo o povo, garantindo-lhe presidir o que plantar,
colher, criar e abater, sem correr o risco da fome, pela falta de
acesso à terra, devem inverter os sentidos das lições ditadas pelo
presidente da Farsul e pelo ministro da Agricultura. O primeiro “tem de
aceitar” e o segundo não pode “encerrar assunto” que envolva direitos
como os que as suas opiniões desconsideram. O artigo é de Antonio
Cechin e Jacques Távora Alfonsin.

“A sociedade tem de aceitar que a época
da comida barata acabou.”

Assim, o presidente da Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande
do Sul) resumiu sua opinião sobre o preço da comida, na edição de
sexta-feira, 17, do jornal Zero Hora.

Para quem
ainda passa fome no Brasil, é difícil recordar quando, no passado, a
comida foi barata. Em todo o caso, tratando aquela opinião de uma
necessidade vital das pessoas, como é a de se alimentar, é conveniente
analisar-se o dito no que ele pode revelar sobre as causas de uma
injustiça social como essa, pois, pelo jeito, não temos saída e estamos
condenados a aceitá-la.

Segundo essa maneira de pensar, cabe
uma comparação. Entre o possível prejuízo que a fração de empresários
representada pela tal liderança possa ter na venda do indispensável à
vida das pessoas, e o que essas possam sofrer por não poderem pagar o
que lhes mata a fome, quem não pode sair perdendo é o dono do capital
(nem sempre identificado, em tudo, com o “produtor rural”, a economia
familiar que o comprove), pois, em todo o contexto explicativo da
entrevista, a “comida barata” aparece como prejuízo certo desse
personagem.

Como o mercado, onde esse capital se alimenta de
dinheiro e não de comida, é um ente abstrato, de humor desconhecido,
refletido em expressões tão grandiloqüentes quanto aleatórias do tipo
“crise da economia mundial”, “excesso de demanda”, “defesa da liberdade
de iniciativa econômica”, “globalização”, as causas dos perversos
efeitos da previsão feita pelo presidente da Farsul geralmente ficam
isentas de qualquer investigação sancionatória, inclusive do ponto de
vista jurídico. A “mão invisível” (Adam Smith) dos seus ciclos
econômicos de crise, exploração da natureza e das gentes, trata de
imunizá-lo.

Algumas mãos visíveis de defesa desse tipo de
irresponsabilidade, todavia, podem ser identificadas, como prova a
afirmação categórica do ministro da Agricultura, publicada na mesma
edição de ZH, segundo a qual “índices de produtividade é assunto
encerrado.”

Ali aparece, novamente, o porque de se encerrar esse
assunto: “Quem
deve definir o que, como e quando o produtor brasileiro vai produzir é
o mercado, a visão que ele tem de oportunidades de negócios,
perspectivas de preço, demanda do mercado interno e internacional. Não
pode ser um ato autoritário, de cima para baixo, dizendo que tem de
produzir com tais índices de produtividade. Não é assim que se faz”.

Entre
o
que a sociedade, portanto, “tem de aceitar” como diz o presidente da
Farsul, e a forma como essa aceitação deve ser feita (“assunto
encerrado”, “não é assim que se faz”…), como diz o ministro da
Agricultura, o Estado, a democracia, os Poderes Públicos, o ordenamento
jurídico não têm que dar palpite nem se meter.

A lei e o
direito, assim, não têm voz nenhuma aí. Quem deve mandar sobre o que
deve se produzir “é o mercado”, “as oportunidades de negócios”, as
“perspectivas de preços”, somente o dinheiro, em última análise. Poucas
vezes se reconheceu, com tanta clareza e pelas vozes dos seus mais
fiéis representes, onde se encontra, efetivamente, o “ato autoritário,
de cima para baixo”, a que faz referência o ministro da Agricultura.
Ele desce do mercado e é indiscutível, fatal, como ato caracteristico
de toda ditadura. A/o pobre faminta/o que se submeta a esse ente-ídolo
capaz de ditar o que, como, quando e quanto ele deve comer. Não é por
acaso, portanto, que acabe morrendo de fome. O Estado e a democracia
prossigam fingindo terem o poder de garantir a vida e a liberdade do
povo pobre.

Haja fome, então, para suportar uma opressão a
esse nível. Ela comprova a maior contradição presente em todo o nosso
sistema econômico. Justamente quando a produção rural conquista
quantidades de alimento mais do que suficientes para alimentar o povo
todo, o chamado “preço de mercado” cai a níveis tão baixos, que somente
a retenção dessas quantidades consegue cobrir o custo da produção, seja
o real, seja o inventado por quem sabe manipular dados a favor do seu
lucro. Aí o Estado deixa de ser o vilão e passa a ser a solução…

Não
é
preciso ser economista para compreender onde tudo isso vai dar. Esse
ar de fatalidade, no qual se inspiram as opiniões das referidas
lideranças, não é igual ao do clima, corriqueiramente invocado em favor
das alegadas dificuldades pelas quais passam os seus liderados. Que a
freqüência desse repetido queixume já alcançou status de segunda
natureza, isso não dá para negar, pois não há ano em que ele não repita
o seu choro.

Quanto cinismo e hipocrisia se refletem, pois,
quando o respeito à lei, especialmente a da segurança nacional, é
invocado com veemência, por essas lideranças, sempre que o povo
necessitado de casa e comida toma em suas próprias mãos a iniciativa de
proclamar que o tal respeito só vale, de fato e materialmente, em favor
de minorias historicamente protegidas por uma ideologia sem outras
referências que não as da propriedade e as do mercado. Se o
destinatário de algumas vantagens previstas em lei é a/o pobre, elas
ignoram e desprezam a lei. Essa exige, por exemplo, o cumprimento da
função sal da propriedade, “em prol do bem coletivo”, das “necessidades
dos cidadãos”, da “erradicação da pobreza”, de “direitos humanos
fundamentais”, expressões que não faltam na Constituição Federal, no
Estatuto da Terra e no Estatuto da Cidade, entre outras regras
jurídicas. Aí, o seu efeito material, concreto, é igual a zero, já que
o mercado, pelo menos o refletido nas opiniões publicadas pela ZH, não
precisa se preocupar com isso.

O direito à alimentação, por
exemplo, somente entrou expressamente na Constituição em fevereiro
deste ano (Emenda 64), como se a satisfação de uma necessidade vital
como essa, de tão desrespeitada no país, tivesse necessidade de se
proclamar em lei, para ser reconhecida como direito. Muito antes, os
tratados internacionais que o Brasil assinou, como o dos direitos
econômicos, sociais e culturais de 1966, já vinculavam o nosso país,
inclusive, à reforma agrária capaz de, no mínimo, atenuar as danosas
conseqüências da comida cara.

Os conceitos de “soberania
alimentar” e de “segurança alimentar”, capazes de dar sustentação a
direitos fundamentais de todo o povo, garantindo-lhe presidir o que
plantar, colher, criar e abater, sem correr o risco da fome, pela falta
de acesso à terra, devem inverter os sentidos das lições ditadas pelo
presidente da Farsul e pelo ministro da agricultura. O primeiro “tem de
aceitar” e o segundo não pode “encerrar assunto” que envolva direitos
como os que as suas opiniões desconsideram. O “realismo econômico” da
comida cara, sem outro remédio, previsto por eles, se está sendo pelo
menos mitigado nos seus danosos efeitos sociais, isso não se deveu ao
mercado, lá erguido à panacéia dos nossos males, mas sim aos
assentamentos gerados pela reforma agrária, pelo menos os que deram
certo justamente por obedecer à outra lógica que não a exclusiva do
mercado. Não foi este também que presidiu a política pública de
implantação do Fome Zero e do Bolsa Família.

Se existem mais
brasileiros saciados, hoje, não devem isso ao mercado. Felizmente, há
uma outra economia em curso, familiar, solidária, cooperativa,
diferente dessa que acumula na mão de poucos o que falta na mesa de
muitos. É por isso que a reforma agrária, esses assentamentos e essas
políticas públicas recebem críticas tão ácidas das lideranças
latifundiárias e daquelas que, no exercício do Poder Público, lhes são
fiéis. “Paternalismos oficiais”, “favelas rurais” costumam aparecer
sustentando essas críticas. É que o ídolo ao pé do qual elas se
ajoelham, rezam e acendem velas diárias de adoração, não aceita outra
forma de produção, distribuição e partilha dos bens indispensáveis à
vida das pessoas que não passe pelo seu poder de exclusão, medido de
acordo com a capacidade de pagar que cada uma dessas tenha alcançado.

Aquela
outra
economia sabe que o dinheiro não se come, nem impõe um “ter de
aceitar” ou um “assunto encerrado” prepotentes e anti-democráticos como
os publicados pela ZH do dia 17. Os direitos e os interesses alheios
não lhe são estranhos ou, até, hostis. O que ela mais deseja é a
suficiência para todas/os e não somente para um pequeno grupo. Está a
serviço de uma justiça social capaz de produzir comida e mesa fartas
onde ninguém se assente constrangido pela dor de saber-se estranho à
comum união.

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