Os paraísos artificiais e os infernos reais

Bastam uns dias experimentando a
sensação de terror frente à guerra ao
vivo na TV para que a classe média e sua “opinião pública” mostrem suas
presas afiadas ávidas por sangue. Diante da urgência de restabelecer a
paz aparente, soa forte a demanda por atacar, cobrar-lhes aos pobres o
preço de sua condição, lavar com sangue a ameaça à tranqüilidade da
paisagem.


A urgência em responder aos ataques
do que se presume
ser o “crime organizado” é inimiga da inevitável constatação de que não
há solução imediata para a questão da segurança pública no Rio e nas
demais capitais brasileiras. “Apressado come cru”, diria minha sábia
avó Isabel, uma brasileira mestiçada de africanos e índios, que
aprendeu a ler praticamente sozinha, e que recebeu este nome em
homenagem àquela que assinou-nos a Lei Áurea. Lei essa que ainda não
clareou os porões do navio.


A realidade da sensação de guerra,
a instabilidade emocional da ameaça, o sangue nas feridas abertas em
tantos inocentes e o terror da insegurança é o prato feito diário das
comunidades pobres do Rio e da periferia de praticamente todas as
cidades brasileiras. Os paraísos artificiais se constroem na distância
e no descaso com o que acontece aos brasileiros que não moram nas ruas
da classe média, foi sempre assim, esse é nosso fosso histórico. Essa é
nossa miopia como povo que ainda não nasceu, porque ainda é incapaz de
se irmanar.


Perguntas óbvias escapam das
análises alarmadas
frente aos incêndios de veículos em vias públicas: O que faz da
fabricação, venda e circulação de armas e munição uma atividade
tolerada e do comércio dos entorpecentes o cavalo de batalha? De um
lado a atividade mortífera e lucrativa das armas e munições é tolerada
lícita e ilicitamente nas barbas do poder público. Do outro lado o
consumo e venda de drogas é bucha de canhão para legitimar extorsões
realizadas pelas polícias seja na forma do “arrego” junto ao tráfico,
seja fazendo “rodar” os usuários de classe média que pagam pedágio pelo
porte.


Nos fronts da guerra ao vivo vê-se
de um lado
“criminosos, bandidos, traficantes” e do outro policias representantes
do Estado e da violência legitimada pelo exercício do poder das
instituições do Direito. Em ambos os lados da guerra os filhos do povo
pobre derramando seu sangue… No meio da guerra, do fogo cruzado, está
lá o povo pobre que usa os péssimos serviços públicos de transporte e
não pode se esconder nos seus condomínios de luxo protegidos pela
segurança privada. Os pobres aqui pagaram sempre o preço! Até quando?


Para
a classe média e a hipocrisia de sua opinião pública veiculada na velha
mídia o confronto é sempre o horizonte do alívio. A sanha de vingança,
o desejo de silenciar o mal mostra a pior face do desprezo pelo povo:
as vozes clamando ataque e o clamor pelo extermínio dos “bandidos”
ganha eco à céu aberto, sob a complacência dos que querem de volta seus
paraísos artificiais e sua paisagem de cartão postal. Esse é o maior
horror! Há um erro cruel em tudo isso: não ataca com sua solução
aparente a causa da violência nem considera a inexorável “teoria da
mosca”. Teoria da mosca? Não sabe o que é? Toca Raul! “Eu sou a mosca
que perturba o seu sono, eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar…E
não adianta vir me detetizar, pois nem o DDT pode assim me exterminar,
porque você mata uma e vem outra em meu lugar…”


As estruturas
de corrupção e violência que secularmente se reproduzem no tecido
social brasileiro são mais que conjunturais. São cicatrizes.


Pertencem
à rede das relações e não serão eliminadas por via de soluções
imediatas. São característica da sociabilidade e é como tal que devem
ser tratadas pelo conjunto da sociedade. Não apenas pelo poder público,
as polícias, os governos. O Brasil nunca esteve tão pronto para encarar
de frente a dura realidade da ferida da miséria, do abandono dos pobres
à sua própria sorte.


O que é preciso que se afirme é que
não
há solução imediata e que o maior gesto de coragem vem justamente de
assumir esta realidade!


Precisamos formular uma AGENDA PARA
O
RIO, uma plataforma cidadã com poder de implementação de políticas
públicas integradas que atue junto ao Palácio da Guanabara e demais
instâncias de governo. O Rio exige a mais ampla colaboração dos
distintos setores e iniciativas da sociedade civil e pode ser exemplo
cidadão para a segurança pública brasileira como um todo. Podemos
agendar um futuro a partir do drama do presente! O lugar que ocuparemos
no mundo exige!


Como forma de ação imediata frente à
crise atual
é preciso que esta AGENDA afirme: controle urgente sobre a fabricação e
a comercialização de armas e sobretudo a circulação da munição, lícita
e ilícita; ocupação cívil das comunidades carentes com políticas
públicas de cultura, educação e inclusão digital e cidadã; respeito
incondicional com a vida e a dignidade das populações pobres e
valorização da participação democrática das comunidades nas decisões
locais; garantia de tratamento justo e reinserção social para as
vítimas da incompetência histórica das elites em assegurar para o povo
direitos básicos de cidadania; Nenhuma confiança nas explicações
fáceis, nas soluções paliativas, nem no terror bombardeado ao vivo pela
velha mídia. Ocupar as ruas com o amor é a maior arma contra a guerra!
O Rio é nosso!


Nunca é demais lembrar que
transferir para
governos e instituições a responsabilidade para questões complexas e
tão amplas é no mínimo “lavar as mãos”. Só a parceria entre a sociedade
e o poder público pode ser capaz de empreender ações estratégicas e
reais que repercutam a largo e curto prazo. Afinal a lógica de manter
uma “paz” aparente, é em si um ato de violência contra comunidades
inteiras cuja “ordem” representa dia a dia chorar e enterrar seus
filhos que nunca se sabe se voltarão para casa ao fim do dia.


A
lógica do confronto só alimenta a indústria da morte e violência gera
violência como gentileza deveria gerar gentileza. A “paz” que nos
oferecem dia é dia é uma mentira, não resiste a um passeio noturno pela
cidade maravilha e é paga à custa de carne humana, triturada, na
violência e na miséria. Nem mais armas nem mais mortes! O alívio da
classe média e da opinião pública não vale uma vida humana sequer!


Se
este país que agora encontra o caminho para se libertar das correntes
da miséria e com elas vencer a violência diária vier a se tornar
realmente um país de classe média será um lugar lindo de viver. Porque
a miséria será vencida. Porque a violência diária pertencerá ao passado
de exclusão. Porque a moral da classe média será contaminada pelo
espírito festivo e alegre do povo pobre, que é nobre, generoso,
fraterno e um dia vencerá o passado que lhe aprisiona nas favelas, nos
morros e nos subúrbios sem lei. Havemos de amanhecer!

Expediente:
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