Nossa indústria de escândalos precisa de
urgente renovação. Depois do “Ministério da Educação acéfalo” que só
acertou em 99,94% das provas do ENEM, há uma polêmica sobre Monteiro
Lobato que, aliás, será do agrado dos que reclamam do Fla X Flu
entre lulismo e antilulismo. Desta feita, há governistas e
oposicionistas em ambos os lados da polêmica. Isto não a torna,
evidentemente, mais interessante.
Aldo Rebelo, o Prof. Deonísio da Silva, Augusto Nunes e dezenas de
tuiteiros fizeram uma tempestade numa xícara
de água contra uma suposta “censura” sofrida pelo autor de Urupês.
Em comum entre todos eles, a ausência de qualquer citação do parecer
que foi pedido ao MEC sobre Caçadas de Pedrinho
(ou, no caso de Aldo, a presença de citações distorcidas do texto). O
blogueiro do Serra, que eu saiba, ainda não surtou com o tema, mas não
duvide. Se, depois de ler algo da obra infantil de Lobato, você ler o
parecer do MEC sobre o tema, perceberá a pobreza da indústria do
escândalo.
O pedido de parecer recebido pelo MEC se relaciona com algo comum no
ensino de obras literárias, em especial para jovens ou crianças: a
contextualização necessária para que epítetos, comportamentos
discriminatórios, racismo explicito, ódio a povos ou a orientações
sexuais etc., sancionadas e apresentadas como normais no contexto em
que a obra foi escrita ou no interior dela (e qual é a relação entre
obra e contexto em cada caso, claro, é um vasto problema), sejam lidos
criticamente e não replicados como modelo pelos alunos. Não é tão fácil
como parece. No caso de Monteiro Lobato, é imensamente difícil.
O Deputado Aldo Rebelo diz: Se
o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos
estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da “nota
explicativa” — a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca
da “submissão da mulher”, e dos livros de José de Alencar, Machado de
Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em
todos cintilam trechos politicamente incorretos.
O Deputado Aldo Rebelo vive num mundo onde todas as discussões
acerca da cultura se dão num terreno ameaçado, pelo estrangeirismo ou
pelo politicamente correto. O Deputado tem uma concepção estática,
patrimonialista de cultura nacional. Para ele, o passado é uma coleção
de sacralidades intocáveis.
A comparação feita por Aldo, entre Lobato e Nelson Rodrigues, é
estapafúrdia, por ignorar o contexto em que se faz o pedido de parecer
ao MEC: o da obra Caçadas de Pedrinho em salas de aulas do
ensino fundamental e médio. Ora, salvo engano meu, não há garotos de 4º
ou 5º ano lendo Vestido de noiva ou Bonitinha, mas
ordinária
nas escolas públicas ou particulares brasileiras. Se eles se introduzem
à obra de Nelson na adolescência tardia ou depois, na faculdade, essa
situação não tem nada em comum, entendamos, com um garoto negro ou
mulato de 10 ou 11 anos de idade sendo introduzido social,
coletivamente à pesada linguagem racista que se encontra em parte da
obra de Monteiro Lobato. Este blog tem tentado ser contido mas, com
vossa permissão, sugiro que só uma besta-quadrada ou um malintencionado
não enxerga isso.
Pois muito bem, dados os fatos de que 1) Monteiro Lobato é peça
chave da nossa tradição literária, especialmente canônico e fundacional
para a literatura infantil; 2) uma obra como Caçadas de Pedrinho
está eivada de linguagem pesadamente racista; 3) essa linguagem não vem
de um “vilão” da história depois punido, mas é sancionada
pela obra, posto que enunciada por Emília, a personagem querida,
central, convidativa à identificação; coloca-se aí um problema nada
simples para o educador. Quem acha que é simples que faça, por
gentileza, o exercício de imaginar alguns dos trechos animalizadores de
negros, citados
pelo Sergio Leo, numa sala de aula com, digamos, 20 ou 22 crianças
brancas ou
brancomestiças e 3 ou 4 crianças negras ou negromestiças. Imagine,
monte seu plano de aula e me conte. É uma situação que tem o potencial
de ser tremendamente traumática para a criança.
O que fazer, então? Ninguém, em nenhum momento, falou em “proibir”
ou “censurar” Lobato. Em nenhum momento se falou sequer de emendar o
texto de Lobato, coisa com a qual eu, particularmente, não teria
grandes problemas, desde que fosse bem feito.
Na verdade, basta
ler o raio do parecer do MEC
para ver que, concorde-se com o texto ou não, ele está escrito dentro
de um espírito razoável: fornecer ao educador instrumentos (introdução,
notas ao pé de página etc.) que contextualizem epítetos e
caracterizações que hoje são inaceitáveis em nossa interação social. O
parecer não está escrito em jargão de especialista, mas está informado
pela leitura de alguns dos melhores estudiosos de recepção de obras
literárias no Brasil, como Marisa Lajolo.
O parecer explica, em linguagem clara, algo que é amplamente
consensual entre estudiosos de literatura: que nenhuma obra literária
está completamente “solta”, “livre” dos valores de sua época e que
nenhuma grande obra é simplesmente um reflexo desses valores tampouco.
Cada obra rearticula, reescreve, chacoalha, reinterpreta os valores de
seu tempo. Em outras palavras, o mesmo Monteiro Lobato cujos diálogos
estão eivados de racismo pode servir para questionar o racismo. O mesmo
Conrad que está encharcado de colonialismo pode servir para questionar
a empreitada colonial. O mesmo Nelson Rodrigues que está empapado de
misoginia pode ser lido de forma feminista, emancipatória. Mas estas
duas últimas tarefas, em sala de aula, são menos explosivas e complexas
que a primeira, posto que no caso de Lobato você está lidando com
garotos de 10, 11 anos de idade.
Um aparato de notas é o mínimo a que um professor tem direito para
trabalhar com as perorações racistas de Emília numa sala de aula do
século XXI. Inventemos escândalos mais inteligentes. Aqueles baseados
na sacralização dos documentos de cultura passados estão ficando meio
tediosos.
Suponho estar óbvio que o parecer do MEC sequer desestimula (que dirá
proíbe) a adoção de Caçadas de Pedrinho ou de qualquer outra
obra de Lobato. O Alex diz nos comentários a este post que ele não
adotaria a obra e eu entendo suas razões. Aliás, eu me
atreveria a dizer que só quem nunca segurou um pedaço de giz não
entenderia. De minha parte, eu não sei se adotaria o livro ou não.
Optei por dar aulas para adultos, em parte, para não ter que tomar
decisões como esta (como sou um homem de muitos vícios, prefiro
lecionar para gente que já adquiriu algum). Eu provavelmente não a
adotaria num contexto em que os garotos negros fossem pequena minoria
em sala de aula. Eu estaria mais à vontade para adotá-la (porque Lobato
realmente é muito bom) se eu sentisse que estou equipado para tornar o
texto um instrumento de debate do próprio racismo. É sempre caso a
caso. O parecer do MEC não substitui a decisão de cada professor. Só
oferece elementos para subsidiá-la.
Como sempre é o caso nas falsas polêmicas, elas valem a pena se
geram alguma boa escrita. Esta gerou pelo menos dois ótimos textos: do
Paulo Moreira Leite e do
Sergio Leo. Fiquemos com eles.