Celebramos alegremente a vitória de Dilma Rousseff. E não deixamos de
folgar também pela derrota de José Serra, que não mereceu ganhar esta
eleição dado o nível indecente de sua campanha, embora os excessos
tenham ocorrido nos dois lados.
Os bispos conservadores que, à revelia da CNBB, se colocaram fora do
jogo democrático e que manipularam a questão da descriminalização do
aborto, mobilizando até o Papa em Roma, bem como os pastores evangélicos
raivosamente partidizados, sairam desmoralizados.
Post festum, cabe uma reflexão distanciada do que poderá ser o
governo de Dilma Rousseff. Esposamos a tese daqueles analistas que viram
no governo Lula uma transição de paradigma: de um Estado privatizante,
inspirado nos dogmas neoliberais para um Estado republicano que colocou o
social em seu centro para atender as demandas da população mais
destituída.
Toda transição possui um lado de continuidade e outro de ruptura. A
continuidade foi a manutenção do projeto macroeconômico para fornecer a
base para a estabilidade política e exorcizar os fantasmas do sistema. E
a ruptura foi a inauguração de substantivas políticas sociais
destinadas à integração de milhões de brasileiros pobres, bem
representadas pela Bolsa Familia entre outras.
Não se pode negar que, em parte, esta transição ocorreu pois,
efetivamente, Lula incluiu socialmente uma França inteira dentro de uma
situação de decência. Mas, desde o começo, analistas apontavam a
inadequação entre projeto econômico e o projeto social. Enquanto aquele
recebe do Estado alguns bilhões de reais por ano, em forma de juros,
este, o social, tem que se contentar com bem menos.
Não obtante esta disparidade, o fosso entre ricos e pobres diminuiu o
que granjeou para Lula extraordinária aceitação.
Agora se coloca a questão: a Presidente aprofundará a transição,
deslocando o acento em favor do social onde estão as maiorias ou manterá
a equação que preserva o econômico, de viés monetarista, com as
contradições denunciadas pelos movimentos sociais e pelo melhor da
inteligentzia brasileira?
Estimo que, Dilma deu sinais de que vai se vergar para o lado do
social-popular. Mas alguns problemas novos como aquecimento global devem
ser impreterivelmente enfrentados. Vejo que a novel Presidente
compreendeu a relevância da agenda ambiental, introduzida pela candidata
Marina Silva.
O PAC (Projeto de Aceleração do Crescimento) deve incorporar a nova
consciência de que não seria responsável continuar as obras
desconsiderando estes novos dados. E ainda no horizonte se anuncia nova
crise econômica, pois os EUA resolveram exportar sua crise,
desvalorizando o dólar e nos prejudicando sensivelmente.
Dilma Rousseff marcará seu governo com identidade própria se realizar
mais fortemente a agenda que elegeu Lula: a ética e as reformas
estruturais. A ética somente será resgatada se houver total
transparência nas práticas políticas e não se repita a mercantilização
das relações partidárias(“mensalão”).
As reformas estruturais é a dívida que o governo Lula nos deixou. Não
teve condições, por falta de base parlamentar segura, de fazer nenhuma
das reformas prometidas: a política, a fiscal e a agrária. Se quiser
resgatar o perfil originário do PT, Dilma deverá implementar uma reforma
política. Será dificil, devido os interesses corporativos dos partidos,
em grande parte, vazios de ideologia e famintos de benefícios.
A reforma fiscal deve estabelecer uma equidade mínima entre os
contribuintes, pois até agora poupava os ricos e onerava pesadamente os
assalariados. A reforma agrária não é satisfeita apenas com
assentamentos. Deve ser integral e popular levando democracia para o
campo e aliviando a favelização das cidades.
Estimo que o mais importante é o salto de consciência que a
Presidente deve dar, caso tomar a sério as consequências funestas e até
letais da situação mudada da Terra em crise sócio-ecológica. O Brasil
será chave na adaptação e no mitigamento pelo fato de deter os
principais fatores ecológicos que podem equilibrar o sistema-Terra.
Ele poderá ser a primeira potência mundial nos trópicos, não imperial
mas cordial e corresponsável pelo destino comum. Esse pacote de
questões constitui um desafio da maior gravidade, que a novel Presidente
irá enfrentar. Ela possui competência e coragem para estar à altura
destes reptos. Que não lhe falte a iluminação e a força do Espírito
Criador.
retirado de Carta Maior