Estatuto da Igualdade Racial: sonegação informativa e as novas bases

“Uma notícia ta chegando lá do interior
Não
deu no rádio, no jornal ou na televisão…”

Milton Nascimento
e Fernando Brant

Nesta
semana que termina o Estatuto da Igualdade Social foi sancionado pelo
presidente Lula. Para um país que teve quase 4 séculos de escravatura,
sendo o último a abolir este opróbrio, e , tendo ficado 112 anos à
espera de uma legislação que consolidasse bases para um enfrentamento
mais vigoroso ao racismo ainda vigente em nossa sociedade tão desigual,
o episódio mereceria um destaque muito maior por parte dos meios de
comunicação. Mas, sem surpreender, a grande mídia comercial noticiou
apenas discretamente o evento. Nenhum grande jornal deu na primeira
página. E o Jornal Nacional da TV Globo fez apenas uma notinha
curtíssima para a importância do fato, sem imagens. Ou seja, na
proporção inversa da ampla divulgação que deu, por meses, à campanha do
DEM contra as cotas para alunos pobres e negros na universidade.


a
Voz do Brasil, programa radiofônico que também nesta semana fez mais
um aniversário, cobriu decentemente a sanção do Estatuto da Igualdade
Racial, mesmo estando sob ataque da ideologia mídia de mercado, que
quer mais uma hora para entupir os ouvidos do povo, predominantemente,
com mais baixaria e publicidade. Portanto, nos grotões, nos quilombos,
nos assentamentos da reforma agrária onde a Voz do Brasil alcança, a
notícia até que chegou. Mas, como diz a música “Notícias do Brasil”, de
Milton Nascimento e Fernando Brant, a depender da grande mídia
comercial, a informação ou é nula ou é a mais resumida possível. Será
nostalgia das senzalas e do pelourinho por parte dos barões da mídia?

É
preciso lutar para a lei pegar

Muitas
conclusões podem ser tiradas da entrada em vigor do Estatuto da
Igualdade Racial. Entre elas, certamente, a de que como nos demais
estatutos, entre eles da Criança e do Adolescente, o do Idoso, ou o
Código de Defesa do Consumidor, a sua plena vigência não é automática.
Será preciso lutar para esta lei pegar. Com a dinâmica das lutas é que
as leis se consolidam, se aperfeiçoam, ampliam direitos. A licença
maternidade, por exemplo, instituída em 1932, na Era Vargas,
estabelecia apenas dois meses. Acaba de ser ampliada para 6 meses. Em
Cuba, há décadas, a licença maternidade é de um ano, e beneficia também
o pai por um certo período.

Afinal, aqui estamos numa sociedade
capitalista, com desigualdades trágicas, e onde a lei ainda é presa
fácil do poder econômico e onde nem a própria Constituição alcançou
ainda sua plenitude. Sem contar que tratam-se de textos legais
rigorosamente desconhecidos da grande massa do povo brasileiro. Está
escrito na lei que é crime matar, mas a taxa de homicídios impunes no
Brasil alcança a tenebrosa estatística de 93 por cento dos casos, que
ficam sem solução, são arquivados. Assim, transpondo para o Estatuto,
para que ele realmente vire um texto a ser cumprido é indispensável a
convocação da cidadania, dos sindicatos, dos movimentos sociais, para
conscientizarem-se de sua existência, de seus alcances e limites. E
também da necessidade de protagonismo e militância caso queiramos
empreender uma inadiável batalha contra esta praga social do racismo.
Talvez por isso mesmo a grande mídia não divulga, esconde, quando era
tema para se fazer do Estatuto um grande fato comunicativo.

A
insensibilidade social da mídia

Dois
episódios me ocorrem para provar a insensibilidade social das
oligarquias que dominam estes meios de comunicação como se
administrassem um latifúndio do espectro eletromagnético ou impresso
informativos. Quando Monteiro Lobato, revoltado com o analfabetismo de
nossa gente, apelou a uma família proprietária de grande jornal
paulista para que a imprensa realizasse uma cruzada contra este
subproduto da deseducação, da ignorância e da pobreza. A resposta que
recebeu deveria estar em todos os cadernos de alfabetizadores para
lembrar que a alfabetização sempre teve inimigos nas oligarquias. “ Ô
Lobato, mas se todos os negros analfabetos forem aprender a ler, quem é
que vai pegar na enxada??”, ouviu um atônito Lobato, registrando-se no
episódio uma soma de elitismo com racismo.

No outro episódio,
ocorrido décadas depois, o diretor de redação deste mesmo jornalão
paulista mata a sua namorada com três tiros, confessa o crime, é
condenado e continua absolutamente livre. O motivo para o crime? A
jovem jornalista, de origem pobre, meio mulata, queria terminar o
namoro. Pena de morte! Ou seja, mesmo sendo proibido matar, mesmo tendo
havido a confissão, mesmo tendo sido condenado, o tal jornalista, está
desfilando sua impunidade livremente, indicando que tipo de ódio social
pode estar sendo cultivado nas cúpulas de quem faz a comunicação no
Brasil e a maneira muito especial que o Judiciário tem para julgar
casos assim!. Quem será a próxima? Por isso, sem uma convocação da
sociedade para transformar este Estatuto em muito mais que uma
referência longínqua e teórica, nós poderemos talvez constatar que o
racismo ainda irá resistir por mais tempo, mesmo sem qualquer razão
para existir, pois trata-se de um crime.

Brasil tem novo rumo

A
outra lição a ser tirada, orgulhosamente, é que o Brasil está na
contra-mão das ondas de racismo e xenofobia que grassam pelos grandes
países capitalistas, sobretudo naqueles países que se arrogam
avançados. Ondas que vêm acompanhadas da demolição de uma série de
direitos trabalhistas e sociais conquistados na edificação do Estado do
Bem-Estar Social. Tudo isto em razão da crise do capitalismo que está
sendo descarregada impiedosamente sobre os trabalhadores. O Brasil está
ampliando direitos sociais!

Países como Suíça, Áustria ou mesmo
França, debatem-se entre a tomada de medidas legais que restringem,
agridem, desrespeitam trabalhadores negros e árabes que por lá
trabalham. E em outros países como Itália, Espanha e Inglaterra, na
prática o racismo vai mostrando seus dentes criminosos, seja nas
condutas dos agentes públicos, dos agentes de emigração, e, muito
especialmente dos agentes policiais. Estes, chegam ao ponto até há não
hesitar em matar em caso de dúvida para com um negro, um mulato, um
árabe, sempre que houver a dúvida, como dolorosamente ocorreu com o
mineiro Jean Charles Menezes, executado em pleno metrô de Londres com 7
tiros na cabeça. Foi considerado terrorista por ter a pele amorenada e
o cabelo não liso!!! Recentemente, o primo de Jean Charles, que também
trabalhou na Inglaterra e luta para que se faça justiça de fato neste
caso – o governo inglês deu uma indenização à família pela morte, como
se fosse uma mala extraviada – acaba de ser deportado ao tentar entrar
novamente naquele país que também está empilhando cadáveres no
Afeganistão e no Iraque, além de ameaçar a Argentina com nova agressão
militar ilegal pelas Ilhas Malvinas.

Basta uma consulta sobre
quem anda preso hoje na Europa e encontraremos, na maioria, um
contingente de jovens negros, árabes, pobres, recebendo o castigo da
prisão. As estatísticas judiciárias nos EUA também revelam uma
população carcerária predominantemente negra, pobre, asiática e
hispânica. O mesmo ocorrendo sobre quem hoje está no corredor da morte
para ser executado lá. Entre eles, o jornalista negro Múmia Abu Jamal,
condenado num processo repleto de irregularidades e exatamente por Juiz
conhecido por ser o campeão em enviar negros para a cadeira elétrica,
onde fica claro que o crime principal de Múmia é o de ter nascido com a
pele negra.

O Estatuto da Igualdade Racial é um passo forte
nesta luta contra o racismo no Brasil, indicando direção oposta ao que
ocorre no mundo. Da mesma forma que muitos países chamados de
desenvolvidos estão fechando-se aos emigrantes, punindo-os, o Brasil
adota política de abertura jurídica de espaços generosos aos
estrangeiros que aqui vivem, linha oposta à xenofobia. Assim como nos
EUA, em 1963, o Presidente Kennedy teve que enviar tropas do exército
para garantir a matrícula de dois jovens negros na Universidade do
Alabama, então vetada a negros, um estatuto aqui deverá ser alavanca
para mobilizar vontades conscientes e dar bases jurídicas para que os
que praticam racismo sejam condenados. Depois daquele episódio no
Alabama, muitos massacres de negros houve nos EUA, e ainda os há.
Executaram Martin Luther King e Malcon X. Aqui no Brasil os massacres
se acumulam. Entre eles o massacre do Carandiru, dos 111 presos, quase
todos pretos, como diz a música do Caetano. A Chacina da Candelária, a
de Acari, a de Vigário Geral. Negros são os primeiros a tombar.

É
preciso parar o Carandiru diário

O
Estatuto da Igualdade Racial também desafia e estimula a criação de
ações concretas por parte da Secretaria Especial de Direitos Humanos no
sentido de coibir a prática diária de torturas nos estabelecimentos
prisionais brasileiros. Houve uma concentração de esforços na apuração
de tortura e assassinatos ocorridos durante a ditadura, mas não tem
havido uma política eficiente da Secretaria contra a tortura diária,
prática corriqueira, que atinge sobretudo pobres e negros agora mesmo
na maioria destes órgãos judiciais.

Se o Estatuto dá as bases
jurídicas para a punição da prática de racismo na internet, se protege
os direitos das comunidades quilombolas, se proíbe às empresas a
prática de critérios étnicos para preenchimento de vagas de emprego e,
entre outras, torna obrigatório o ensino de história geral da África e
da população negra do Brasil em escolas públicas e privadas do ensino
fundamental e médio – e todos estes são pontos muito positivos para uma
nova realidade de luta global contra o racismo – mesmo assim, só uma
militância vigorosa, atenta, fortalecida fará com que a transformação
pretendida seja a mais rápida, a mais profunda, a mais ampla.

O
Estado brasileiro, ainda marcado por todos os vícios e deformações
inerentes a um estado com as características da burguesia, vem
experimentando por meio da convocação de Conferências Públicas, as mais
variadas formas de democratização. Desde a primeira Conferência
Nacional de Saúde, ocorrida também na Era Vargas, em 1942, e sobretudo
durante o governo Lula, um torrencial de demandas e propostas está
sendo perfilado, organizado, tornado visível, proclamado, muito embora,
em vários casos, ainda sem conseguir a relação de forças adequadas para
as mudanças mais radicais, mesmo sendo absolutamente necessárias.
Algumas das bandeiras do movimento negro e dos movimentos sociais em
geral, somente serão realidade com uma transformação social muito mais
aprofundada, algo que um governo de composição como o atual ainda não
reúne todas as condições de implementar e consolidar. Mas, as bases
estão lançadas para um patamar superior destas lutas. Em vários casos,
são os próprios movimentos sociais que não adotam também uma tática
capaz de condicionar, o governo, por meio de um apoio crítico, a
realizar mudanças concretas em muitos setores. Por exemplo, não se
justifica que a TV Brasil – mesmo com toda abertura e visibilidade que
já oferece às questões ligadas à África – não tenha ainda horários
definidos e ampliados de sua programação que contemplem os
diferenciados aspectos da luta contra o racismo. Ou da luta geral dos
trabalhadores.

Distribuição massiva e gratuita

Exemplo
disso
é que, se não houver uma atitude decidida e vigorosa por parte
dos movimentos que lutam contra o racismo, por parte dos sindicatos,
dos intelectuais, corremos o risco do texto do Estatuto da Igualdade
Racial sequer receber uma massiva divulgação, como se faz necessário.
Os trabalhadores, ainda hoje, não conhecem seus direitos inscritos na
CLT, a população brasileira em geral desconhece o texto da
Constituição, não há consciência ampla ou sequer informação sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente, muito embora já tenha completado
20 anos. É fundamental que seja cobrada do estado brasileiro uma edição
massiva deste Estatuto da Igualdade Racial, algo na casa de dezenas de
milhões de exemplares. E distribuição gratuita. Há capacidade gráfica
ociosa para isto e há um povo que não tem acesso à leitura destes
textos. Mas tem direito! Se não é dado ao cidadão o direito de
desconhecer o texto de uma lei, em contrapartida, vemos que no Brasil o
estudo e a divulgação ampla e gratuita da Constituição, para dar um
exemplo, numa foram sistematicamente promovidas.

Todos estes
textos legais devem merecer edições simples, popularizadas em sua forma
e alcance, com a linguagem mais acessível e mais comunicativa possível,
superando o intransponível juridiquês. Mas, estas edições massivas
devem ser distribuídas gratuitamente, como se faz na Venezuela, por
exemplo, com a divulgação de milhões de exemplares de bolso da
Constituição Bolivariana, proporcionando um aprendizado importante para
a população. Num país como o Brasil, que ainda registra formas de
trabalho análogas ao trabalho escravo, o conhecimento dos direitos
trabalhistas contidos na CLT deveria ser uma prioridade dos meios de
comunicação e não apenas restrito a advogados trabalhistas e círculos
de dirigentes sindicais. E os meios de comunicação, concessões de
serviço público, deveriam sim priorizar horários específicos para o
conhecimento das leis, no mínimo proporcionalmente ao tempo que
desperdiça para estimular o consumo de álcool e a ingestão de comidas
maléficas à saúde.

Universidade da África versus Navios
Negreiros

Por
fim, vale registrar que no mesmo dia da sanção do Estatuto da Igualdade
Racial, o presidente Lula também sancionou a lei que cria a
Universidade Federal da Integração Luso-Africana e Brasileira, a
Unilab, que terá sede na cidade de Redenção, no Ceará, primeira cidade
brasileira a abolir o escravagismo no Brasil, 5 anos antes da Lei
Áurea. A criação desta universidade tem o mesmo simbolismo de outras
iniciativas que colocam o Brasil em rumo oposto ao de muitos países que
estão registrando endurecimento e perversidade no trato da questão
racial.

Com a Unilab, que receberá estudantes africanos que aqui
estudarão gratuitamente, o Brasil se aproxima do gesto de Cuba adotado
há 12 anos, quando criou a Escola Latinoamericana de Medicina destinada
a formar médicos para oferecer aos países mais necessitados do
continente, inclusive aos Estados Unidos. Cerca de 500 jovens negros e
pobres estadunidenses estudam medicina em Cuba, gratuitamente. Quando
voltarem formados para os EUA, poderão praticar medicina social nos
bairros negros do Harlem e do Brooklin onde viviam; Segundo disseram
estes próprios estudantes, se tivessem lá continuado provavelmente
teriam sido capturados pelas perversas redes e garras do narcotráfico.
Nos EUA dificilmente poderiam estudar medicina. Em contraponto ao
bloqueio econômico e às agressões que sofre há décadas dos EUA, Cuba
“contra-ataca” doando ao povo norte-americano a generosa formação
humanizada de centenas de seus filhos.

Consciência generosa e
solidária

O
Brasil vai nesta direção. Além da Unilab, que dará oportunidade para
que jovens africanos formem-se em nível superior, ombro a ombro com
estudantes brasileiros, proporcionando mutuamente a formação de uma
consciência generosa e solidária, marcada pelo reconhecimento que todos
os povos do mundo e nós brasileiros em particular temos em relação aos
povos africanos! Para além da Unilab, também na linha de pagar nossa
dívida, está a instalação de unidades da Embrapa em território
africano, e vem sendo mencionado por Lula o propósito de estimular a
produção de agroenergia, permitindo a autonomia,a independência e a
soberania tanto energética quanto alimentar dos povos africanos, em sua
maioria ainda dependentes da importação de petróleo, ou ainda sem
capacidade para a geração de energia elétrica.

Mandela , Cuba e
a Mama África

No
final do ato de sanção do Estatuto da Igualdade Racial, Lula disse que
agora somos uma nação um pouco mais negra, um pouco mais branca e ,
sobretudo, um pouco mais igual. Perante o mundo, comparecemos com uma
iniciativa que nos coloca em diferencial positivo e generoso. De certo
modo, tomamos de Cuba uma parte de sua solidariedade para com os
africanos, muito embora Cuba tenha chegado ao ponto de pegar em armas
para defender a independência de Angola, derrotando o exército racista
da África do Sul na Batalha de Cuito Cuanavale, e, com isto, derrotando
o próprio regime do apartheid, como reconhece Mandela, dedicando esta
conquista ao povo cubano.

Mesmo que ainda tenhamos tantas
dívidas não pagas internamente e tantas desigualdades ainda não
resolvidas, agora somos nós brasileiros a nos lançar, como nação, ao
pagamento da gigantesca e dolorosa dívida que temos para com os povos
da África. E com ações concretas: uma universidade, a presença de uma
estatal como a Embrapa, políticas e convênios etc. Vamos apostando,
como nação, num mundo mais justo, mais solidário, mais humano,
incorporando a África, quando muitos países a consideram continente
descartável. Muito breve, poderemos estar fazendo como o generoso povo
cubano, enviando médicos, técnicos e professores para a Mama África.
Construindo as bases para que se faça o trajeto contrário dos navios
negreiros, humanizando o retorno na forma de conhecimento, tecnologia,
saber e solidariedade.

Enquanto isto, muitos países, sobretudo
os ricos que apoiaram o animalesco regime do apartheid no passado,
seguem o vergonhoso exemplo de espalhar tropas e morte pelo mundo. O
Brasil está em outra direção!

Expediente:
Presidente: Fabiano Moura • Secretária de Comunicação: Sandra Trajano  Jornalista ResponsávelBeatriz Albuquerque • Redação: Beatriz Albuquerque e Brunno Porto • Produção de audiovisual: Kevin Miguel •  Designer Bruno Lombardi