Ficções dos nossos dias: que mercados financeiros?

Na realidade, os mal denominados mercados têm
muito pouco de mercado. São bancos com muito lucro e poucos riscos. Se
os mercados financeiros fossem mercados de verdade, os bancos teriam de
absorver as perdas em investimentos financeiros falidos. Esses bancos
gozam de um grande protecionismo fornecido pelos estados, assim como por
instituições como o FMI que garantem os seus exuberantes lucros à custa
de enormes reduções dos gastos públicos e da proteção social das
classes populares. O que o FMI faz é a transferência de fundos das
classes populares para os bancos.

Este artigo assinala que os mal denominados mercados
financeiros não correspondem às características que definem os mercados,
pois os seus agentes – os bancos – gozam dum grande protecionismo
fornecido pelos estados, assim como por instituições internacionais –
como o Fundo Monetário Internacional – que garantem os seus exuberantes
lucros à custa de enormes reduções dos gastos públicos e da proteção
social das classes populares. O artigo mostra exemplos deste
protecionismo no caso dos EUA e na mal denominada “ajuda” do FMI-Euro
aos países com elevados déficits e dívida pública, como a Grécia, que é
em realidade ajuda primordialmente para os bancos europeus.

A
linguagem que se utiliza para explicar a crise é uma linguagem que
aparenta ser neutra, meramente técnica, quando, na realidade, é
profundamente política. Assim, dizem-nos que os “mercados financeiros”
estão forçando os países da União Europeia e, muito em especial, os
países mediterrânicos – Grécia, Portugal e Espanha – e Irlanda, a seguir
políticas de grande austeridade, reduzindo os seus déficits e dívida
públicos, com o objetivo de recuperar a confiança dos mercados, condição
necessária para alcançar a recuperação econômica. Como disse há uns
dias Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (BCE): “A
condição para a recuperação econômica é a disciplina fiscal, sem a qual
os mercados financeiros não certificam a credibilidade dos estados” (Financial
Times
, 15-05-10).

A realidade, contudo, é muito diferente.
Estas medidas de austeridade, promovidas pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI) e pela União Europeia (UE), estão criando uma grande
deterioração da qualidade de vida das classes populares, pois estão
afectando negativamente a sua proteção social e destruindo emprego,
dificultando a sua recuperação econômica. Assim aconteceu na Lituânia,
onde o PIB diminuiu 17% e o desemprego alcançou 22% da população ativa
(veja-se o meu artigo Quién paga los costes del euro?). Uma situação
semelhante ocorrerá nos países citados anteriormente.

Pareceria,
pois, que são os mercados financeiros que estão a impor estas políticas
aos governos. Ora bem, que quer dizer “os mercados financeiros”? Em
teoria, na dogmática liberal que domina os establishments europeus (o
Conselho Europeu, o BCE e a Comissão Europeu, assim como nos governos da
maioria dos países da UE), os mercados são um processo de livre
comércio entre agentes financeiros – os bancos – que obtêm benefícios
para compensar os seus riscos, pois que se assume que existem riscos em
tais mercados. Mas tal retórica não define a realidade, pois tais
entidades – os bancos – operam em âmbitos e instituições enormemente
protecionistas dos seus interesses, nos quais o risco, em geral, brilha
pela ausência. Na realidade, os mal denominados mercados têm muito pouco
de mercado. São bancos com muito lucro e poucos riscos. E o que está a
acontecer mostra a certeza deste diagnóstico.

Nos EUA, onde
existe amplo consenso sobre o fato de que a crise financeira foi
iniciada pelos comportamentos de Wall Street, a crise bancária foi
resolvida com a entrega aos bancos de quase um bilião de dólares pagos
pelo Estado, que beneficiou enormemente os banqueiros e os seus
acionistas, conseguindo inclusive mais benefícios do que os que tinham
antes da crise. A obscenidade de tais benefícios e as práticas
desonestas e criminosas dos banqueiros (causadores da crise) explicam a
sua enorme impopularidade e a de tais medidas, que não se repercutiram
favoravelmente sobre a população, que viu como os seus padrões de vida
diminuíram devido à crise provocada pelos bancos. Não foram os mercados,
mas os bancos e os seus políticos no Congresso (com nomes e apelidos
conhecidos) e nas administrações Clinton, Bush e Obama (também com nomes
e apelidos conhecidos) que criaram a crise, salvaram os bancos e agora
apelam à austeridade.

Uma situação quase idêntica está
acontecendo na UE. Os comportamentos especulativos da banca europeia
foram consequência de decisões políticas que desregularam a banca,
decisões que se tomaram particularmente, não apenas em Wall Street, mas
também nos centros financeiros, principalmente a City de Londres e
Frankfurt, consequência da enorme influência da banca sobre os governos
britânico e alemão. A mal denominada “ajuda” do FMI-EU (de 750 bilhões
de euros) aos países com dificuldades não é uma ajuda às populações
daqueles países, mas sim aos bancos (e muito em especial aos alemães e
franceses) para assegurar-lhes que os Estados lhes pagarão as dívidas
com os juros confiscatórios que exigiram. Na realidade, se os mercados
financeiros fossem mercados de verdade (e, portanto, houvesse
competitividade e risco no seu comportamento), os bancos teriam de
absorver as perdas em investimentos financeiros falidos. Se o Governo da
Grécia, por exemplo, fosse à bancarrota, a banca alemã teria de
absorver as perdas por ter tomado a decisão de comprar títulos do Estado
grego.

Ora bem, isto não acontece nos mal denominados mercados
financeiros devido a haver toda uma série de instituições que protege os
bancos. E a mais importante é o FMI, que empresta dinheiro aos Estados
para que o paguem aos bancos. Daí que, como nos EUA, os bancos nunca
perdem. Quem perde são as classes populares, pois o FMI exige aos
governos que extraiam o dinheiro dos serviços públicos das tais classes
populares para pagar aos bancos. O que o FMI faz é a transferência de
fundos das classes populares para os bancos. Isto é o que se chama
“conseguir a credibilidade dos Estados face aos mercados”.

Estas
transferências, contudo, além de serem profundamente injustas, são
enormemente ineficientes. O fracasso das políticas de austeridade
propostas pelo FMI nos países em crise é bem conhecido, o que explica o
descrédito de tal instituição. O FMI, desde a era Reagan, é a
organização financeira que impôs mais sacrifícios às classes populares
dos países que receberam a “sua ajuda”, com resultados económicos
altamente negativos, tal como denunciou correctamente Joseph Stiglitz.
Não são os mercados, mas os interesses bancários e seus aliados – entre
os quais se destacam o FMI e o BCE – que estão a impor estes
sacrifícios. Ao menos, chamemos os culpados pelo nome.

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