Até os mais consistentes e autorizados analistas
perceberam que as enormes somas reunidas com dificuldade para “salvar a
Grécia” são efetivamente destinadas a salvar…. os investidores:
bancos, fundos e outros credores internacionais. Bancos, fundos e outros
credores internacionais são, com efeito, os felizes receptores do
esforço dos cidadãos gregos e dos fundos públicos europeus.
texto que aqui se apresenta tenha como finalidade desenvolver um ponto
de vista (relativamente) independente, torna-se difícil nada dizer sobre
o plano de “estabilização” que a União Européia e o FMI acabam de
anunciar e a propósito do qual não se pode deixar de questionar o que é
que ele vai estabilizar e por quanto tempo…
O “plano de
estabilização” ou os riscos do “bootstrapping” (1)
O plano é
constituído por três parcelas: 60 bilhões de euros de contribuições da
União Européia diretamente mobilizáveis, 250 bilhões da mesma moeda mas
mobilizados pelo FMI, e uma grande fatia de 440 bilhões provenientes do
fundo de garantia. Diga-se, sem ambiguidades, que os 60 bilhões da União
Europeia são uma gota de água quando comparados com o problema
potencial da dívida soberana na zona euro – mas são proporcionais ao
poder fiscal da União (isto é, às contribuições nacionais que lançam
créditos no seu orçamento). Os 250 bilhões do FMI são mais substanciais
mas, mesmo assim, quando acrescentados aos precedentes 60, não dão uma
resposta satisfatória ao problema: a Natixis estima que só o plano de
salvação da Espanha atinge 400 a 500 bilhões de euros, sem falar da
Itália, da Irlanda, etc. Daqui se conclui que se o contágio atingisse
simultâneamente diferentes dívidas nacionais, seria o fundo de garantia
que responderia ao essencial das tensões provocadas.
É aqui que
reside o ponto fraco deste plano, pois, no seu fundamento, o dispositivo
garante dívidas suspeitas por meio de finanças públicas suspeitas…
Este projeto serve-se, claro está, da heterogeneidade da situação das
finanças públicas europeias, ao garantir as menos boas pelas menos más.
Subsiste, no entanto, um efeito de circularidade, que se tornaria
manifesto se houvesse um efeito de contágio por pouco vasto que fosse e
que veria inverter-se a proporção das dívidas (ditas) menos boas e das
dívidas (ditas) menos más: neste caso, as primeiras, de minoria que são,
tornar-se-iam preponderantes. Reside neste ponto a diferença entre o
plano atual e o plano de garantia dos bancos privados concretizado pelos
Estados, no outono de 2008, numa altura em que os Estados em questão
possuíam ainda dívidas públicas moderadas e pareciam estar numa situação
de exterioridade e de solidez relativamente ao setor bancário.
No
presente plano de estabilização, são os Estados que se protegem
mutuamente numa altura em que as suas solvabilidades são controversas e a
destruição da dupla condição de exterioridade e de solidez é um fato.
Ninguém poderá excluir um cenário no fim do qual – daqui a seis, doze,
dezoito meses? – a opinião financeira, atualmente exaltada pelas
centenas de bilhões postos à sua disposição, tome consciência do caráter
“bootstrapping” da manobra. Se a crença financeira efetuar esta nova
mudança, o conjunto do dispositivo desmoronar-se-á e tudo terá de
recomeçar. Esperemos que o crescimento volte o mais rápido possivel e
permita exaurir todas as tensões, iniciando calmamente o ajuste dos
rácios de solvabilidade soberanos no mais curto lapso de tempo.
O
único ancoradouro seguro do plano de salvação reside na sua quarta
componente: a adopção pelo BCE de uma estratégia de “Quantitative
Easing” (2) que anteriormente proclamara irrealizável – mas que,
milagres da crise extrema que tornam possivel o impossível, atestam o
caráter profundamente político da repartição de impossibilidades,
objetivamente tecnicistas. Se a metempsicose existisse,
transformar-nos-íamos de boa vontade em moscas, para irmos pousar
candidamente na parede da sala de reuniões do conselho do BCE, onde os
vidros poderão, dentro em breve, estremecer. Talvez se saiba em breve,
qual foi a relação de forças que impôs aos representantes alemães (e
talvez a outros) uma medida decisiva que eles rejeitavam imperiosamente e
contra a qual tudo tinham feito para neutralizar.
Ludibriado,
mais uma vez, pela rigidez geral do conjunto da construção europeia, que
o obriga a editar regras infrangíveis para logo de seguida as violar, o
BCE habituou-se a encontrar uma pose de unanimidade que, ao garantir a
credibilidade, tolera mal as expressões públicas de discórdia,
ressentidas como rupturas ou como dramas. Tal significa que as aflições
dogmáticas que certamente já se apoderaram do BCE, e que têm
tendência para se agravar, correm o risco de se tornar incômodas. No
caso de ocorrer uma crise de contágio soberana, o BCE, enquanto
componente mais fiável do plano de conjunto, encontrar-se-ia na primeira
linha e os senhores Stark e Weber assistiriam, furiosos, ao movimento
incontrolável (mas, necessário) da cunhagem de moeda. A passagem para o
“Quantitative Easing” é pois a única tábua de salvação tecnicamente
robusta, mas politicamente talvez seja a mais frágil. Poderemos pois
antecipar que a história está longe de ser contada e que outros
capítulos serão acrescentados.
Salvar a Grécia ou salvar os
bancos?
O anúncio do plano de estabilização não alterará nada
(bem pelo contrário!), até mesmo as questões centrais que levanta (mais
uma vez) a presente etapa da crise financeira. Até os mais consistentes e
autorizados comentadores se aperceberam que as enormes somas reunidas
com dificuldade para «salvar a Grécia» são efectivamente destinadas a
salvar…. os investidores. Bancos, fundos e outros credores
internacionais são, com efeito, os felizes receptores do esforço dos
cidadãos gregos e dos fundos públicos europeus, o que significa que a
solidariedade não é uma palavra vã e permanece um valor seguro nestes
tempos perturbados. É de lamentar que o entusiasmo pedagógico
que preside iniciativas tão admiráveis como às do CODICE (Conselho para a
Difusão da Cultura Económica), do Instituto para a Educação Financeira
do Público ou às dos programas dos cursos de SES (Ciências Econômicas e
Sociais) encontre aqui inexplicavelmente os seus limites.
É
preciso ser cego para não vislumbrar neste ponto uma excelente
oportunidade de pedagogia, habitualmente considerada essencial pelas
tropas de elite dos preceptores midiáticos e políticos: a idéia de que, a
pretexto de salvar a Grécia se salvarão os investidores, ganharia
popularidade, com fins exclusivamente experimentais, para se saber que
efeito poderia ter sobre a opinião pública a sua propagação, e para
observar, sempre com espírito muito cientifico, o que poderia vir a
seguir.
Decerto, e com todo o rigor, não se poderia afirmar que
os contribuintes europeus vêm socorrer os credores internacionais. Os
Estados europeus vão cobrar um suplemento de dívida aos mercados durante
os três anos que durará o plano e obterão lucros (escandalosamente),
nas costas dos gregos. Poder-se-á pensar até que, no seguimento das
práticas do FMI, os Estados europeus cuidaram de si ao arranjar um lugar
de credores privilegiados que lhes garante uma prioridade em caso de
reestruturação.
Sejamos mais sérios. No último outono, Dominique
Strauss-Kahn, diretor-geral do FMI e Jean-Claude Trichet, presidente do
Banco Central Europeu, ao dar crédito à ideia de que a crise abrandara,
cometeram uma imprudência, num movimento de alívio prematuro, ao
declararem que socorrer a finança privada era em si suficientemente
escabroso para não ter que fazê-lo uma segunda vez. No entanto, é aquilo
que está ocorrendo atualmente, exceptuando a mediação oportunamente
fornecida pelas dívidas soberanas que permite manter a ilusão, haja o
que houver, de que se trata de salvar um Estado com pouco dinheiro (como
todos os Estados) e nada mais. Ora, nunca se viu um Estado morrer por
não pagamento de dívida, pela simples razão de que a expressão falir
não tem rigorosamente cabimento a propósito de uma entidade política
soberana.
Tudo isto é muito diferente do que aconteceu com os
bancos privados, em 2008, pois que, caso não tivessem sido ajudados,
teriam desaparecido. Logicamente, se o Estado não morre por não
cumprimento, não é o Estado que estamos a salvar. Quem é então? Os
credores, claro.
As dívidas soberanas da zona euro são detidas,
em média, a 12% pelos bancos e 14% pelos investidores não bancários (3).
No entanto, no caso da Grécia, pois que, ao que parece, é a Grécia que
se está a salvar, a chave de repartição é singularmente diferente. No
período compreendido entre 2005 a 2010, a dívida pública grega foi
subscrita a 43% pelos bancos, 8% pelos gerentes (asset managers) e 4%
pelos hedge funds (fundos de risco) (4). Eis, pois, a população de
necessitados que os fundos públicos de socorro europeu vão ajudar. E se
nos lembrarmos da simpatia espontânea que toda esta pobre gente recebe,
logo nos vem ao pensamento: por que é que não a deixaríamos sucumbir?
É
uma questão que vale mais do que um movimento de humor e na qual se
adivinha imediatamente a resposta, aliás não sem legitimidade. Porque,
tal como o episódio do Outono de 2008 já o provou, a finança possui
objetivamente meios para nos forçar a ajudá-la. É pois importante saber
em que medida e perguntar, depois, se não haveria algumas conclusões
políticas a tirar desta situação excessiva que nada tem de imaginário.
A
ausência de mecanismos de reestruturação das dívidas soberanas
O
que aconteceria aos bancos se a Grécia não tivesse dinheiro?
Lembremo-nos primeiro que uma dívida não significa
necessariamente perda completa e definitiva para os credores, mas
reestruturação da dívida segundo uma sábia mistura de reescalonamento e
de exoneração (haircut na linguagem astuciosamente imaginativa da
finança). É certo que a reestruturação de uma dívida de mercado, por
oposição a uma dívida bancária sindicada, apresenta numerosas
dificuldades. Se nesta última era fácil reunir em torno de uma mesa um
número razoável de credores bancários ou públicos para negociar, como
por exemplo aquando das crises das dívidas latino-americanas do início
dos anos 80, através dos seus clubes (Clube de Paris, Clube de Londres),
a reunião de um grande número de credores obrigacionistas é
problemática. Não é, no entanto, impossível.
O FMI ao tomar
consciência, no início dos anos 2000, desta mutação nas formas de
financiamento soberanas, questionou-se sobre o processo de liquidação
ordenado das dívidas obrigacionistas sob o modo de um chapter (5)
remodelado (ou melhor, de um chapter 96) para uso das dívidas soberanas.
Ann Krueger, na altura vice-directora do FMI, pôs de pé um projecto de
SDRM (Sovereign Debt Restructuring Mechanism) decalcado do direito das
falências privadas e organizou, sob a égide do FMI, convertido
entretanto numa espécie de tribunal de comércio internacional, uma
reunião dos principais credores com a finalidade de produzir um
regulamento concordatário executório para todos a partir do momento que
fosse avalizado por uma maioria qualificada. A ideia não era muito boa
mas, pelo menos, acentuava a ideia de que um novo modo de financiamento
soberano chamava a si novos modos de regulamentação das dívidas
soberanas! Mas naquela altura, Wall Street fez ouvidos de mercador, já
que reestruturar significava fatalmente corte, e os nossos
amigos da finança são homens elegantes que não cedem. Torna-se claro que
a concordata traz sempre consigo uma boa parte de exoneração, enquanto
que os bons planos de salvação pública, sob o comando do FMI ou dos
Estados, oferecem melhores esperanças de total recuperação através de um
ajustamento estrutural. Acabados de sair dos anos Clinton,
nada se podia recusar nessa altura à finança. O SDRM acabou por ser
esquecido.
O indistinto ponto de falta de liquidez
bancária
Impossibilitados de lhe darmos outra certidão
de nascimento, dele se pode conservar a premissa essencial: quando há
falta de liquidez, os credores abrem habitualmente o porta-moedas. Mas
os dos investidores actuais gostariam de mantê-los fechados, por isso
teremos de os obrigar a abri-los. Mas até onde e quais serão as
consequências?
Os bancos encontram-se incontestavelmente em
situação de assumir as perdas! Mas, como sempre (cf. “La croisée des
chemins” a questão decisiva é a localização dos pontos fracos. Que
significa ponto crítico neste caso, isto é, o que é que poderá
acontecer? Como para qualquer entidade económica não-soberana, o ponto
crítico é o da falta de liquidez. Esta questão põe-se no entanto em
termos diferentes para um agente económico não-financeiro. Com efeito,
os bancos devem quotidianamente operar regulamentações extremamente
finas da sua liquidez através do balcão do banco central, mas também e
em parte com a liberalização financeira, nos mercados de capitais, em
particular numa gaveta muito especial que é o mercado interbancário. A
continuidade dos seus financiamentos a muito curto prazo é vital, bem
como tudo o que a possa ameaçar é, potencialmente, uma catástrofe. Como
já verificámos a grande escala, desde o Verão de 2007, a falta de
liquidez bancária continua a ser raramente local. Propaga-se rapidamente
através do jogo das obrigações cruzadas interbancárias e é precisamente
nesta propagação que reside um risco sistémico de materialização.
O
problema tem origem no facto de que a falta de liquidez de um só banco
pode, muito rapidamente, contagiar os vizinhos. Como os bancos sofrem de
uma paranóia de mútua fiscalização, muito embora, por vezes,
fundamentada, não deixa de apresentar inconvenientes, nomeadamente a
divagação. Tal significa, neste caso particular, que por causa do
entusiasmo das antecipações do mercado interbancário e dos mercados de
crédito por grosso, uma simples dúvida em relação à falta de liquidez
pode transformar-se em certeza : “receamos que o banco A não tenha
liquidez – mesmo se muitos elementos poderiam conduzir a uma conclusão
inversa – e, por isso, emprestamos-lhe mais. Mas como todos os dias ele
deve satisfazer as suas necessidades de tesouraria, o banco acaba por
não ter liquidez…” Através das suas propriedades altamente
auto-realizadoras, o contágio da desconfiança torna-se num poderoso
veneno das finanças. É o que os Estados da zona euro estão a descobrir e
os bancos privados vão talvez rapidamente redescobrir (já que o tinham
experimentado no Outono de 2008).
É esta a razão pela qual os
banqueiros mentem sistematicamente. Lembremo-nos que no Outono de 2007 o
estado-maior da Société Générale (grupo bancário francês) afirmara de
pés juntos que no pior dos cenários o banco não perderia mais
de 200 milhões com as subprime. No entanto, perderam 2,5 bilhões,
astuciosamente misturados no chamado caso Kerviel, Baudoin Prot,
presidente do grupo francês BNP-Paribas começou também por jurar que
este banco não estava exposto a quaisquer riscos soberanos gregos. Logo
depois, confessou que estava à altura de um bilhão de euros. E, logo em
seguida, a 5 bilhões, aos quais se deve acrescentar 3 bilhões de
créditos comerciais. Não confessou, no entanto, que ele é o feliz
proprietário do Fortis, um banco europeu que bate recordes na detenção
de títulos públicos gregos (cerca de 60% dos seus ativos líquidos, se
acreditarmos no que diz o Financial Times, esse jornal esquerdista).
O
mais grave neste caso é que, no lugar destes bancos, faríamos a mesma
coisa. E isto porque há uma racionalidade objetiva da mentira quando
estamos submetidos aos erros, por vezes delirantes, da crença coletiva
na finança. Uma excepção deve ser feita: a racionalidade que o senhor
Prot reclama para ele, deveria ser concedida, da mesma forma, ao Estado
grego…
Até onde deixar os bancos perder?
Poderíamos,
ainda assim, tirar de tudo isto algumas conclusões simples.
A
primeira é que um sistema cujos efeitos na vida material da maioria são
de tão longo alcance – em inglês a expressão é mais incisiva: “far
reaching” – e que funciona, em última análise, com as forças primitivas
da opinião e da crença, está votado às mais aberrantes formas de
suspeita e às reacções mais aberrantes que necessariamente se lhe
seguem. Um tal sistema é, pois, iníquo e dá razões de sobra para que
tenha de ser posto no bom caminho.
A segunda necessita de um
desvio e parte da ideia de que nunca sabemos muito bem a quantas andamos
com as perdas bancárias, e que essa incerteza nos obriga, à partida, a
caminhar sobre ovos. Como qualquer empresa, um banco pode ter perdas. Em
princípio, nada obsta a que se queixe dos títulos gregos. Existe, no
entanto, um limiar de perdas – eventualmente muito longe do ponto de
iliquidez – onde se desencadeiam todos os mecanismos geradores de
antecipação de desconfiança que brutalmente a ela conduzirão. No
universo bancário, uma crise de liquidez é geralmente uma inquietação de
insolvência mal resolvida a partir de antecipações bancárias da
concorrência7 – por um delicioso paradoxo desse universo, os bancos
nunca deixam uma das suas congéneres chegar por si mesma à falta de
liquidez, eles empenham-se em conduzi-la a isso…
Até onde deixar,
então, os bancos arrecadar ? A resposta consiste num «nem
demais nem de menos» que não é de grande ajuda operacional. Mas o susto
do Outono de 2008, aliado à eficaz presença dos interesses
bancários no coração dos aparelhos do Estado e o contexto geral da crise
financeira em pleno desenvolvimento fizeram inclinar consideravelmente a
balança do lado do nem demais, até ao do nada.
Tirando o caso Lehman Brothers, somos obrigados a notar que os credores
dos bancos implicados no naufrágio geral das finanças saíram sem um fio
de cabelo molhado, façanha apesar de tudo considerável, se pensarmos na
magnitude do choque, porque todos esses heróis, sem exceção, teriam
ficado em camisa sem a ajuda pública…
Há algo intrinsecamente mau
neste desencalhar permanente dos credores dos bancos e dos próprios
bancos (8) que os torna quase insubmersíveis. Mas o mal eleva-se ao
quadrado se pensarmos que esta forma de graça de que usufruem está longe
de ser inteiramente infundada. Não é que a falência de um banco seja
impossível. Sem dúvida a brutalidade dos processos de mercado priva-o de
um corte de todos os seus financiamentos a curto prazo – vitais. E, à
parte os credores, é também de uma importância estratégica não deixar as
contrapartidas penduradas demasiado tempo. Contudo, pode-se imaginar
muito bem a continuidade das operações da banca sob administração
judicial do banco central (se não sob “administração judicial”, pelo
menos sob controlo de liquidez garantida) o tempo necessário para
encontrar uma regulamentação que reestruture a dívida, distribua as
perdas e organize a saída da insolvência (se a saída for possível) por
recapitalizações ad hoc (por exemplo mobilizando os credores por
“debt-equity swap”, isto é, convertendo as suas dívidas em capitais
próprios).
Mas o problema que o choque de uma falha a alto nível
no setor bancário coloca é não-local. Um grande número de bancos vão
ver-se afetados simultaneamente. As coisas tornam-se razoavelmente mais
complicadas. O suficiente para tornar impossível um regulamento
ordenado. Podíamos fazer a experiência de deixar acontecer a falha a
alto nível para ver se o sistema bancário é, afinal, capaz de a absorver
sem entrar em colapso – e é possível que sim. Mas a experiência é na
brincadeira, porque senão… É bem preferível antes de carregar no botão
“falha a alto nível” ter na manga o segundo plano de salvamento bem
montado e pronto a sair. Tudo depende, evidentemente, da medida da falha
considerada. O que nunca pode ser dito com precisão já que, convém
lembrar, os efeitos totais dependerão, em larga medida, da dimensão dos
mecanismos de amplificação auto-realizadores, ex ante imprevisíveis.
A
captura privada do bem comum da estabilidade financeira
Suponhamos
mesmo que estes efeitos não são fatais. O resultado é, no entanto,
quase de certeza, um aperto suplementar na contração do crédito, visto
que é assim que reage sistematicamente o sector bancário a todos os seus
contratempos – exactamente o que nos faltava no meio de uma recessão.
Além disso, a eventualidade do colapso ou a eventual travagem brusca do
crédito aproximam-se do ponto que justifica toda a presente discussão, a
saber, a ligação objectiva do interesse particular do setor bancário e o
interesse econômico do corpo social. Efetivamente, os bancos têm como
marca distintiva ocupar essa posição muito particular na estrutura
social do capitalismo, onde o seu próprio destino se liga ao da
coletividade – uma espécie de passagem para o plano real das pretensões
vulgarmente imaginárias da ideologia, já que Gramsci define precisamente
a ideologia como a operação discursiva que transfigura interesses
particulares em interesse geral (e cuja fórmula genérica foi dada pelo
célebre “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados
Unidos”).
É por isso que convém olhar com a máxima desconfiança
as declarações de certos agentes quando sustentam que o bem-estar da
maioria depende do seu próprio bem-estar. É preciso estar de pé atrás
sem que essa desconfiança a priori bem fundamentada impeça de ver os
casos em que tal ligação está objetivamente constituída. Porque os há. E
particularmente em materia bancária.
Em uma economia
capitalista, o interesse material comum passa efetivamente pelo que se
chama setor bancário. Isso acontece porque os agentes econômicos do
setor produtivo têm uma necessidade vital de manter o seu acesso ao
crédito para financiar o ciclo de produção e também, evidentemente, para
investir. Um golpe, não a este ou àquele banco local, mas ao setor no
seu todo tem, no pior dos casos, – o “meltdown” – o efeito de pôr em
pânico quase instantaneamente toda a economia; e no caso menos grave –
perdas importantes sem colapso do conjunto – o de atrasar brutalmente o
crescimento por retração do crédito (depois de ter apanhado um calafrio,
os bancos já não querem emprestar e só pensam em reestruturar o seu
saldo).
É sabido desde 2008 que discutir o sistema bancário não é
viável. É possível fazê-lo encaixar prejuízos mas – é preciso estar
consciente disto – à custa de um contragolpe que virá rapidamente
manchar a nossa alegria de ver finalmente os banqueiros amargar. Mas
então, perguntar-se-á neste preciso momento, “estamos inteiramente nas
suas mãos?” A resposta é sim.
Desprivatizar o sector
bancário
Todavia, o momento da grande raiva que decorre
desta percepção é ultrapassável, e pode até ser de curta duração. Porque
a identificação dessa ligação objetiva traz ela própria a sua
consequência política: a situação de dependência do interesse comum a um
interesse particular tão localizado e tão concentrado tem o nome
verdadeiro de captura e, por conseguinte, não pode ser tolerado. O que
toca o interesse comum respeita o comum e não pode em caso algum ser
abandonado a interesses privados – que, previsivelmente, reduzirão a
comunidade aos últimos extremos da dependência: “salvem-me ou mato-vos,
não me toquem ou firo-vos gravemente, que nada me aconteça ou pagareis
por isso”, o pior é que de todas as vezes estas ameaças são verdadeiras!
Não
há que desesperar com esta verdade, basta tirar dela as
conclusões certas: se se verifica que, devido a propriedades muito
particulares do crédito em economia de mercado capitalista, o setor
bancário é o detentor de fato dos interesses materiais superiores da
comunidade, e que ele dispõe dos meios objectivos para forçar a
comunidade a dar-lhe tudo o que ele exige, então ele deve render-se à
comunidade.
Uma outra formulação deste princípio é: un setor
bancário privatizado não é tolerável. Reunir o número de concessões que
as finanças bancárias terão feito engolir aos corpos sociais de há três
anos para cá, é uma ideia que tem pernas para andar. É de crer que isto
não seja ainda suficiente a julgar pelo mega-plano de salvamento europeu
de 9 de Maio, que não muda nada às estruturas, que determina a relação
dos poderes (ditos) soberanos e das finanças, e finalmente entrega a
estas absolutamente tudo o que elas exigem: dum lado os planos de rigor
para a população, do outro as garantias para si! É verdadeiramente
comovente a alegria da finança quando, na manhã do dia 10, no grande
pacote de 750 bilhões de euros, descobre que o Natal é em Maio. Embora
dê vontade de bater se formos a pensar que as aposentadorias na França
vão alegremente a caminho do desmantelamento por um impasse de 30
bilhões no horizonte de vinte anos.
Desta vez, a interpretação
dos mercados está correta, pelo menos a curto prazo: todos os valores
bancários estão em alta, é tão bom saber-se amado. Se – mas só por
milagre – um terramoto político de grande magnitude viesse a ocorrer, o
que se torna cada vez mais evidente que não partirá dos governos, e um
novo acordo surgisse no horizonte, então aí seria preciso incluir
formalmente o princípio de proibição da captura dos bens comuns – como a
estabilidade e a segurança financeira lato sensu – por interesses
privados, e tirar daí a conclusão operacional que logicamente se
seguiria: nacionalização e a seguir socialização do sistema bancário
(9).
Como muitas vezes acontece, para passar da raiva reprimida à
raiva declarada basta uma palavra; de um abuso marginal para um abuso
geral, uma provocação a mais, a maioria das vezes nem sequer consciente
no espírito do provocador. A este respeito sejamos gratos ao excelente
Baudouin Prot, presidente de BNP-Paribas e da Federação bancária
francesa que, quando ainda nem se tratava de salvar a Grécia e reunir
centenas de bilhões, se inquietava já com uma possível taxação dos
bancos – sem esquecer de juntar a ameaça à “inquietação”: “uma taxa
reduziria os fundos próprios cujo nível determina a solidez e a
capacidade de fazer empréstimos de bancos […] Se formos demasiado longe,
vamos tornar o crédito mais raro e mais caro” (10). Não seria
possível ser mais transparente, nem afastar melhor a vontade de ir demasiado
longe. E até mesmo muito mais longe.
Tradução de José
Costa e Deolinda Peralta
NOTAS
(1) O
“bootstrapping” designa a tentativa feita pelo barão de Munchausen de
voar esticando ele mesmo os atacadores das botas e, de uma maneira
geral, os processos repetitivos nos quais se espera que o efeito produza
por ele mesmo a causa.
(2) Isto é, a intervenção direta nos
mercados através de proposta firme de títulos da dívida pública.
(3)
Sylvain Broyer, Costa Brunner, “Qui détient les dettes publiques
européennes ?”, Flash Natixis, n° 124
(4) Números comunicados
pela Public Debt Management Agency, agência grega de gestão da dívida
pública.
(5) cf. O capítulo do direito das falências da ONU
consagrado às empresas.
(6) Ibid., mas desta vez dedicado às
colectividades públicas territoriais.
(7) Ver: “La « régulation
financière”, entre contresens et mauvais vouloir , secção “Le dérivatif
de la solvabilité”.
(8) Bancos que são importantes credores e
devedores mútuos.
(9) De que foi dada uma prefiguração em “Pour
un système socialisé du crédit”
(10) “Taxe bancaire : une fausse
piste pour Baudouin Prot”, Challenges, 15 de Abril de 2010