Sistemas tributários favoráveis aos ricos são herança da
fase de hegemonia neoliberal no mundo, consolidada a partir do final dos
anos 1970. Houve ampliação do fosso entre ricos e pobres e aumentou a
miséria e a fome no mundo, em pleno século XXI, quando a humanidade
dispõe de meios técnicos e recursos para erradicá-las definitivamente. É
o mundo do “capitalismo puro”, forjado pelo neoliberalismo em ação. O
artigo é de Hideyo Saito.
Apesar de aplaudir os avanços no combate à pobreza e à fome no
Brasil desde o início do governo Lula, em 2002, recente relatório da ONU
apontou para a necessidade de um sistema tributário progressivo, para
que o país possa se livrar dessas mazelas de forma definitiva. O
diagnóstico foi elaborado pelo relator especial das Nações Unidas contra
a Fome, Olivier De Schutter, que se declarou impressionado pelo grau de
compromisso e pela diversidade dos esforços realizados para melhorar a
situação. Mas o fulcro da questão, segundo analisou, é que os problemas
sociais brasileiros estão sendo enfrentados com recursos obtidos
principalmente das camadas mais pobres da sociedade, justamente por
causa da tributação desigual.
De acordo com a visão expressa no
relatório da ONU, uma reforma tributária progressista é tão
imprescindível quanto outras transformações estruturais que incidem
sobre a concentração da riqueza e da terra no país. Citando dados do
próprio governo, lembra que famílias com receita até dois salários
mínimos pagam aproximadamente 46% a título de impostos indiretos (isto
é, embutidos nos preços de bens e de alguns serviços), enquanto as que
têm renda superior a 30 salários mínimos arcam com apenas 16%. Apesar da
vergonhosa concentração da terra agricultável – apenas 47 mil grandes
propriedades ocupam 43% de todo o espaço disponível, enquanto 2,4
milhões ficam com apenas 2,5% – o Imposto Territorial Rural arrecada
apenas 0,01% do PIB. “O sistema tributário regressivo limita seriamente o
impacto redistributivo desses programas [sociais]”, sublinha o
relatório da ONU.
A desigualdade tributária em favor dos ricos é
um dos saldos da fase de hegemonia neoliberal no mundo, imposta a
partir do final dos anos 1970. Não é casual que os próceres dessa
corrente, como entre nós o ex-ministro e ex-senador Roberto Campos, por
exemplo, pregaram incansavelmente contra a tributação da renda e do
capital. O país só poderia crescer se conseguisse atrair capital,
oferecendo-lhe mais vantagens numa competição sem quartel com outros
países subdesenvolvidos. Seguindo essa política de leilão ao contrário, o
governo FHC derrubou tributos para investimento estrangeiro na bolsa de
valores, eliminou quaisquer diferenças no tratamento dado ao capital
externo, em relação ao capital nacional, e congelou a aprovação do
Imposto sobre Grandes Fortunas, que ele mesmo havia proposto quando
senador. É verdade que nessa gestão a carga tributária teve enorme
crescimento, mas sempre reforçando unicamente os tributos indiretos.
Trata-se de assunto pouco grato à mídia oligopólica, mas que se torna
cada vez mais visível como fator fundamental para que, naquele período
de “pensamento único”, aumentasse a brecha entre países ricos e países
pobres, bem como a desigualdade social dentro de cada um. Exatamente ao
contrário do que prometia a cartilha do fundamentalismo de mercado.
Como
a tributação regressiva minou as finanças gregas
De fato, um
aspecto dos mais relevantes (e mais ignorados) da crise de dívida
pública da Grécia é que seu sistema tributário é bastante regressivo e
que, além disso, a sonegação dos setores mais abastados é muito elevada,
como mostraram artigos recentes do Le Monde Diplomatique.
Segundo o ministério das Finanças, em 2008 os profissionais liberais
gregos declararam ao fisco uma renda anual média de pouco mais de € 10
mil, enquanto empresários e comerciantes admitiram receita de € 13 mil.
Em contraste, os trabalhadores e aposentados informaram recebimento de €
16 mil. A evasão fiscal provoca um rombo de € 20 bilhões anuais na
receita pública, sem considerar a renúncia fiscal representada pela
regressividade do sistema (1). O resultado é que, para financiar
suas atividades, o Estado é obrigado a apelar para que credores privados
adquiram títulos do tesouro. Ora, os que vêm a ser credores são
justamente os cidadãos das classes mais abastadas, que cobram juro para
emprestar ao governo o dinheiro que este deixou de recolher por causa da
sonegação e de um sistema tributário exageradamente benevolente em
relação ao rico!
Esses mesmos setores dominantes, não
satisfeitos, empenham agora seu poder em impor ao governo do Pasok
(movimento socialista pan-helênico) a adoção de um pacote de ajuste
fiscal ao gosto do neoliberalismo, com redução de salários do
funcionalismo e de aposentadorias e pensões, além de cortes drásticos em
políticas sociais e nos investimentos públicos. Tudo isso certamente
agravará a recessão e a situação dos trabalhadores do setor privado, que
já sofrem um desemprego da ordem de 10,6% (índice oficial) ou 18%,
conforme outras fontes. Evidentemente, eles se contrapõem ao aumento da
tributação direta sobre a renda, o patrimônio e a herança, que seria
parte de um programa “natural” de solução, conforme preconizam os
economistas franceses Laurent Cordonnier e Frédéric Lordon. Para o
primeiro, isso “equivaleria a suprimir essa espécie de direito
censitário da era neoliberal, que consiste em deixar às classes mais
abastadas a livre escolha de como aplicar o excedente de ganhos não
consumíveis: destinar esses fundos ao pagamento de impostos ou
aplicá-los no mercado financeiro, para financiar a dívida pública”.
Segundo Cordonnier, a elevação da carga tributária para os mais ricos
seria como exigir deles o pagamento de impostos atrasados, de que
ficaram livres há pelo menos 20 anos, período em que ainda receberam
juros do governo sobre o dinheiro assim poupado (2).
Maior
fosso entre ricos e pobres da história dos EUA
Outra
manifestação no mesmo sentido teve como pano de fundo a realidade dos
Estados Unidos, onde os números também indicam a existência de
regressividade tributária. Segundo o jornalista Les Leopold, do Huffington
Post, a carga marginal de impostos incidente sobre rendimentos a
partir de US$ 3 milhões anuais caiu de 91% nos anos 1950 para apenas 28%
nos 90 (3). Max Castro, do Progreso Semanal, menciona números
recém divulgados pelo Internal Revenue Service (a Receita Federal dos
EUA), segundo os quais os 400 estadunidenses mais ricos, que tiveram
receita média de US$ 345 milhões em 2007, pagaram apenas 16,6% de
impostos. Foi a tributação real mais baixa desde 1962. Em conseqüência, a
receita desses bilionários aumentou 31% naquele ano, em comparação com
2006 (4). Leopold acrescenta que os altos executivos do setor
financeiro receberam aproximadamente US$ 150 bilhões em bônus, “como se
fossem uma recompensa por quebrarem a economia”. Em 1970, a diferença de
ganho de 100 presidentes (CEOs) de grandes corporações em relação ao
trabalhador médio foi de 45 para um. Em 2008 havia subido para 1.071
para um. “O fosso entre ricos e pobres é maior hoje do que em qualquer
momento da história dos EUA”, assegura o jornalista.
Os
sucessivos cortes de impostos desde o final da década de 1970 foram
apresentados como indispensáveis para que houvesse mais investimentos
produtivos, mais empregos e mais prosperidade no país. Mas a renúncia
fiscal – sublinha o jornalista – transformou-se em especulação em Wall
Street, gerando sucessivas “bolhas” financeiras. Os ganhos do setor
financeiro, que correspondiam a cerca de 15% do total dos lucros gerados
na economia dos EUA em 1960, passaram a representar quase 40% em 2008
(antes do desastre). Em resumo, “o setor financeiro quebrou [e quebrou o
país] como resultado direto da redução de impostos para os super-ricos e
a desregulamentação de Wall Street”, denuncia. Agora, trata-se de fazer
o trajeto contrário, não apenas impondo uma regulação do setor
financeiro de interesse da sociedade, mas também um sistema progressivo
de tributos, que seja capaz de promover uma redistribuição da renda e da
riqueza.
Panorama semelhante é traçado pelo jornalista do The
Wall Street Journal, Robert Frank, em um livro que conta como vivem
os multimilionários estadunidenses, cujo número cresceu
exponencialmente a partir dos anos 1990. Ele diz que a política
tributária teve papel importante nesse boom, ao se tornar cada vez mais
favorável aos ricos. “A alíquota máxima do imposto de renda federal caiu
de 91% em 1963 para 35% em 2007. A taxa máxima do imposto sobre ganhos
de capital de longo prazo – lucros com ações, títulos e outros direitos
financeiros – caiu de 20 para 15% nos últimos cinco anos. Atualmente, o
imposto máximo sobre a maior parte dos dividendos é de 15%, quando em
2002 era de 38,6%”, escreve. De acordo com Frank, o Centro de Política
Tributária do já mencionado IRS calcula que 80% da renúncia fiscal do
governo Busch beneficiou os 10% mais ricos da população, sendo que quase
um quinto foi colhido por um décimo do 1%, que constitui o universo dos
multimilionários (5).
Apesar de tão clara situação,
qualquer política redistributiva continua a ser um anátema nos Estados
Unidos. Leopold lembra que o assuntou rendeu muitas críticas a Barack
Obama durante a campanha eleitoral, quando foi acusado de querer “punir o
sucesso”, ao defender um sistema tributário progressivo. Da mesma
forma, a recente reforma do setor da saúde rendeu uma fortíssima
campanha contra Obama, que chegou a ser acusado de querer arrastar o
país ao comunismo, porque, entre outras coisas, aumentou em 0,09% o
imposto de contribuintes com renda superior a US$ 250 mil para financiar
o Medicare (assistência médica) (6). Enquanto isso, um grupo de
trabalho criado pelo governo dos Estados Unidos para estudar uma
estratégia de segurança nacional para o país, conhecido como “Seminar
11”, concluiu que o ponto mais vulnerável do país é a economia, que está
caminhando para o desastre. Seu relatório, divulgado em março último,
considerou alarmantes o déficit público próximo de US$ 1 trilhão e a
perspectiva de que a dívida pública mais que dobre até 2020. Mesmo
assim, as recomendações do grupo incluem, sobretudo, corte de benefícios
sociais, especialmente os ligados à previdência e ao Medicare.
A
outra face da moeda: aumenta a fome no mundo
Ampliando o foco,
os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), assumidos no ano 2000
pelos países-membros da ONU para reduzir a pobreza extrema e a fome no
mundo até 2015, estão prestes a fracassar, segundo reconheceu o informe
apresentado à Assembléia-Geral da organização pelo secretário-geral, Ban
Ki-Moon. O documento diz que a pobreza extrema (pessoa que vive com
menos de um dólar por dia) caiu de 1,8 bilhão de vítimas em 1990, para
1,4 bilhão em 2005, mas a maior parte da redução se registrou na China.
Quando se desconsidera esse país, a pobreza extrema no mundo aumentou,
com o aparecimento de 36 milhões de novos miseráveis no mesmo período. O
número de pessoas que passam fome cresceu de 842 milhões em 1990 para
1,02 bilhão em 2009, resultado, em boa parte, da alta dos preços dos
alimentos nos últimos três anos e da crise financeira e econômica do
capitalismo (7). Desses, 642 milhões vivem na Ásia e no Pacífico;
256 milhões na África subsaariana; 53 milhões na América Latina e no
Caribe; 42 milhões no Oriente Médio e norte da África; e 15 milhões nos
países ricos (8).
Um estudo produzido por especialistas
da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação
(FAO) e do Programa Mundial de Alimentação (PMA), também da ONU, mostra
que a fome se expandiu de forma significativa entre 2004 e 2007. Nada
menos que 31 países e 195 milhões de crianças padecem de fome crônica. A
perspectiva é de piora desse cenário catastrófico, com novas quedas de
safras e consequente aumento de preços no mercado internacional, como
resultado do aquecimento global. As classes dominantes mundiais
continuam insensíveis ao assunto, como mostra a ausência de
representantes graduados do G8 e dos demais países desenvolvidos na
Reunião sobre Segurança Alimentar, realizada em Roma de 16 a 18 de
novembro último. Estiveram presentes cerca de 60 chefes de estado de
países do terceiro mundo (9). No final do encontro foi divulgado
um melancólico comunicado que manifesta o compromisso dos governos de
lutar para que não aumente o número de famintos e de miseráveis no
mundo.
Dois dias antes da reunião, antevendo seu fracasso, o
diretor geral da FAO, Jacques Diouf, começou um jejum para alertar para a
urgência de se adotar medidas “para dar um fim à vergonha da fome”,
mais intolerável do que nunca, porque a humanidade conta com meios
técnicos e com recursos para eliminá-la definitivamente. Por fim, uma
pesquisa efetuada em 2009 por especialistas das universidades de
Stanford e de Washington sustenta que, sem uma sistemática
redistribuição dos resultados econômicos, o final do século XXI verá a
metade da população mundial sofrendo os efeitos da crise alimentar, que
será agravada por problemas resultantes do efeito do aquecimento global
sobre as regiões tropicais e subtropicais do mundo (10).
Um
último lembrete cabível é que o mundo que não consegue acabar com a
fome, ou sequer reduzi-la de forma consistente em pleno século XXI, é o
mundo do “capitalismo puro”, forjado pelo neoliberalismo.
(1) Niels
Kadritzke. A Grécia é a bola da vez. Le Monde Diplomatique Brasil,
março/2010.
(2) Laurent Cordonnier. Banco Central Europeu – Rumo à
falência. Le Monde Diplomatique Brasil, março/2010; Frédéric Lordon. A
urgência do contrachoque. Le Monde Diplomatique, março/2010.
(3)
Les Leopold. Por que estamos com medo de taxar os super-ricos?
Huffington Post, 12/03/2010.
http://www.huffingtonpost.com/les-leopold/why-are-we-afraid-to-tax_b_496302.html
(4)
Max J. Castro. Debemos retornar de la plutocracia a la democracia.
Progreso Semanal, 24/02/2010.
http://progreso-semanal.com/4/index.php?option=com_content&view=article&id=1939:debemos-retornar-de-la-plutocracia-a-la-democracia&catid=4:en-cuba&Itemid=3.
(5) Robert Frank. Riquistão. Tradução Alessandra Mussi. Manole:
Barueri (SP), 2008, pp. 42-43.
(6) Walter Pincus (The
Washington Post). Segurança dos EUA começa na economia. O Estado de S.
Paulo, 14/04/2010.
(7) Víctor M. Carriba (Prensa
Latina).Objetivos del Milenio: el fracaso. Contralínea, 04/04/2010.
http://contralinea.info/archivo-revista/index.php/2010/04/04/objetivos-del-milenio-el-fracaso/.
(8)
Katia Monteagudo (Prensa Latina). Un mundo de hambre. Contralínea,
28/03/2010.
http://contralinea.info/archivo-revista/index.php/2010/03/28/un-mundo-de-hambre/.
(9)
Ernesto Montero Acuña (Prensa Latina). Alarma por el hambre.
Contralínea, 13/12/2009.
http://contralinea.info/archivo-revista/index.php/2009/12/13/alarma-por-el-hambre/.
(10)
Ernesto Montero Acuña (Prensa Latina). Siglo de explosión demográfica y
hambruna mundial. Contralínea, 21/02/2010.