“Os
ricos estão mais ricos do que nunca, de modo que não sei o quanto mais
vão enriquecer com Piñera”
(Escritora Isabel Allende, 17 de
dezembro de 2009)
Em nenhum outro momento do último meio
século a direita esteve tão perto, como agora, de apoderar-se do governo
mediante o voto cidadão. As eleições de 13 de dezembro deram ao
empresário Sebastián Piñera uma vantagem de 14 pontos sobre o senador e
ex-presidente Eduardo Frei: 44,05% contra 29,6%. No entanto, a medida
que se aproxima o segundo turno de 17 de janeiro, o panorama começa a
mudar. Sob a superfície triunfalista das pesquisas e dos meios de
comunicação, surgem de novo – em apoio à Concertação – as maltratadas
reservas de vontade democrática para enfrentar o poder oligárquico.
Trata-se da última linha de defesa de uma coalizão de governo extenuada
por suas inconseqüências, suas querelas internas e a corrupção de muitos
de seus funcionários e representantes.
Contudo, à falta de uma
alternativa popular e democrática, transformadora da sociedade, que
ainda não conseguiu emergir, a Concertação de Partidos pela Democracia
representa o mal menor capaz de conter a voracidade de uma oligarquia
arrogante e inescrupulosa. Don Dinero pretende administrar o poder total
no Chile, mascarando sua ditadura com o voto obtido através da
manipulação das consciências, tal como sonhou o pinochetismo com sua
Constituição de 1980, ainda vigente.
Um pouco de história
A
tentação do grande empresariado por administrar a soma do poder
político, social e econômico tem já sua história no Chile moderno. A
primeira tentativa – quase exitosa – foi feita em 1938 pelo milionário
especulador da Bolsa e ex-ministro da Fazenda, Gustavo Ross Santa Maria.
Mas foi derrotada, por uma margem estreita, pelo advogado e professor
radical Pedro Aguirre Cerda, candidato da Frente Popular (radicais,
socialistas e comunistas), que alcançou 50,26% contra 49,33% de Ross.
Em
1952, outro empresário – fundador de uma das principais fortunas do
país -, Arturo Matte Larraín, tratou também de impor sua riqueza para
ser eleito presidente da República. Não teve êxito, mas conseguiu 27,81%
dos votos. Foi derrotado de forma contundente por um ex-ditador
(1927-31), o general Carlos Ibáñez del Campo (46,8%), que também superou
o radical Pedro Enrique Alfonso (19,95%) e o socialista Salvador
Allende Gossens (5,44%), que fazia sua primeira tentativa de chegar a La
Moneda.
Em 1958, um empresário – com mais papéis que Piñera –
ganhou a Presidência da República. Jorge Alessandri Rodríguez,
presidente da Companhia Manufatureira de Papéis e Cartões (CMPC) e da
poderosa Confederação da Produção e do Comércio, independente próximo do
Partido Liberal, filho do ex-presidente Arturo Alessandri Palma
(1920-25 e 1932-38), obteve 31,2% dos votos. Superou, por estreita
margem, o socialista Salvador Allende (28,91%), o democrata-cristão
Eduardo Frei Montalva (20,75%), o radical Luis Bossay Leiva (15,43%) e o
deputado independente Antonio Zamorano Herrera, ex-sacerdote de
Catapilco (3,36%). No Congresso Pleno, o Partido Radical – partido da
maçonaria – votou por Alessandri, dando às costas ao irmão Salvador
Allende, ex-ministro de Aguirre Cerda.
O governo dos gerentes
A
receita de Jorge Alessandri foi transportar para o governo os métodos
de administração da empresa privada para “gerenciar” a crise que vivia o
país. Por isso sua administração foi conhecida como o “governo dos
gerentes”. Desde cedo, a grande empresa – nacional e estrangeira – foi
beneficiada com as medidas desse governo. Ainda que representante da
oligarquia, Alessandri praticava uma forma de vida sóbria e moderada,
bem distinta da conduta ostentadora do atual candidato da oligarquia.
Alessandri vivia em um apartamento da rua Phillips, em frente à Praça de
Armas, e caminhava diariamente até o palácio La Moneda. Passava os
finais de semana em sítio próximo a Santiago, para onde viajava com seu
automóvel particular. Ainda não havia chegado ao país o furacão
financeiro do neoliberalismo que, mais tarde, traria a ditadura
militar-empresarial, aprofundando a desigualdade e provocando a
transnacionalização da economia.
No período pós-ditadura, outro
empresário, Francisco Javier Errázuriz, tentaria comprar a cadeira de
O’Higgins. Em 1989, obteve pouco mais de um milhão de votos (15,43%),
mas foi superado pelo herdeiro da ditadura, o ex-ministro da Fazenda
Hernán Buchi (29,40%), e pelo democrata-cristão Patrício Aylwin Azócar
(55,17%), cuja presidência iniciou a rodada de governos da Concertação
que se prolonga até hoje.
A Concertação em cifras
O
sucessor de Aylwin, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, não teve problemas. Foi
eleito em 1993 com maioria absoluta: 57,98% (4.040.497,00 votos). Mas,
de novo, um empresário e candidato da UDI tentou ganhar a presidência:
Arturo Alessandri Besa (24,41%), sobrinho de Jorge Alessandri, ex-cônsul
da ditadura em Singapura. José Piñera Echenique, irmão de Sebastián,
ex-ministro da ditadura, alcançou 6,18%. Este Piñera foi o criador das
Administradoras de Fundos de Pensões (AFP) que entregaram ao capital
privado nacional e estrangeiro os fundos previdenciários dos
trabalhadores chilenos. Parte considerável destes recursos, cerca de 50
bilhões de dólares, foram investidos no exterior, sobretudo nos Estados
Unidos. Além disso, como ministro da Mineração, José Piñera promoveu a
Lei Mineira que abriu as portas a um investimento estrangeiro que quase
não paga impostos no país.
Somente em 2006, as companhias
estrangeiras de cobre ganharam 20 bilhões de dólares. Esses rendimentos
são colossais se consideramos que superam os investimentos brutos em
mineração no Chile nos 30 anos anteriores. O caso mais escandaloso é o
dos lucros da mineradora La Escondida, uma empresa australiana.
Finalmente, como ministro do Trabalho da ditadura, José Piñera foi autor
do Plano Laboral, um conjunto de normas que reduziram a pó os direitos e
conquistas dos trabalhadores chilenos, desarticulando a organização
sindical.
Mas a situação da Concertação se tornou difícil a
partir de Frei. Seu sucessor, Ricardo Lagos Escobar, ex-radical,
militante “part time” do Partido pela Democracia (PPD) e do Partido
Socialista, não alcançou a maioria absoluta em 1999. Chegou somente a
47,96% (3.383.339 votos). Pisando-lhes os calcanhares veio o candidato
da UDI, Joaquín Lavín (47,51% e 3.352.199 votos). A candidata comunista
Gladys Marin obteve 3,19% e o humanista Tomás Hirsch, 0,51%. Ainda que a
direção do PC tenha chamado o voto nulo ou branco no primeiro turno,
grande parte de seu eleitorado apoiou Lagos, que ganhou por um nariz
(51,31%) de Lavín (48,69%).
As dificuldades concertacionistas se
repetiram em 2005, enfrentando uma direita dividida. A socialista
Michelle Bahcelet obteve 45,96% contra 25,41% de Sebastián Piñera
(Renovação Nacional) e 23,23% de Joaquín Lavín (União Democrata
Independente, UDI). A soma dos candidatos de direita superava os votos
de Bachelet (48,64% contra 45,96%). Mas, desta vez, o Partido Comunista,
que havia apoiado o humanista Tomás Hirsch (5,40%), chamou o voto para
Bachelet. O PC apresentou algumas condições, entre elas a reforma da
Constituição e a mudança do sistema binominal, além de temas
relacionados à legislação trabalhista e à proteção do meio ambiente, que
foram aceitas de imediato pela candidata e por seu comando de campanha.
Desta forma – ainda que Hirsch tenha chamado o voto nulo – Michelle
Bachelet pode derrotar Pinera por 53,50% contra 46,50%.
Assim
chegamos à sombria situação encarada hoje pela Concertação. Sem dúvidas,
o pior resultado de um de seus candidatos é o 29,60% que Eduardo Frei
obteve no dia 13 de dezembro. Deverá definir a eleição no segundo turno
com um Piñera que se apresenta com 44,50%. No entanto, surgem dúvidas se
essa porcentagem é o máximo que o candidato da direita pode alcançar ou
se ele tem condições de crescer puxando a votação de Enríquez-Ominami,
da qual nunca esteve muito distante. Os próprios analistas da direita,
após a euforia inicial, advertiram que a fortaleza de Piñera pode ser
uma ilusão de ótica. Com efeito, seus 44,5% são inferiores ao percentual
alcançado pela direita em 1989, 1999 e 2005. Assim mesmo, parte
considerável da votação de Marco Enríquez-Ominami (20,13%), provém da
Concertação e de setores de esquerda, que votariam em Frei ante o perigo
de uma vitória da direita. O deslocamento de votos para o candidato da
Concertação já começou com o Junto Podemos (Partido Comunista, Esquerda
Cristã e Socialistas Allendistas) que, no dia 20 de dezembro,
oficializaram seu apoio a Frei. O candidato presidencial do JP, o
socialista Jorge Arrate, aumentou em 60 mil os votos do setor e obteve
6,21% (430.824 votos) que reforçarão a votação de Frei.
A
erosão ideológica do Chile
Não obstante, se mantém em pé a ameaça
de uma vitória da direita no dia 17 de janeiro. Não só pela
contundência de sua propaganda que inclui os meios de comunicação mais
influentes do país. Eles se encarregam de manter viva a imagem de um
triunfo irresistível de Piñera. É um fato que há uma percepção de
esgotamento da Concertação e um desejo de mudança que não se expressa
com coerência programática. Por enquanto se orienta a reclamar “caras
novas”, uma demanda pouco consistente que nenhum setor político atende
até hoje. No entanto, Piñera e a direita “enchulada” capitalizaram esse
sentimento e reclamam a “mudança”, sobretudo depois do eclipse de
Enríquez-Ominami.
Em uma análise rigorosa, uma eventual vitória
de Piñera seria produto de um longo processo de erosão ideológica e
política que preparou o terreno – após a terrível experiência da
ditadura – para que o país assimile um governo de direita. A
responsabilidade desse processo, destinado a manchar a vontade
democrática do povo, deve-se ao efeito na consciência e na cultura
chilena da economia de mercado que a ditadura implantou e que a
Concertação aperfeiçoou.
Esta política suicida econômica e
cultural destroçou os cimentos humanistas e solidários de partidos como o
Socialista e o Democrata Cristão. A isso é preciso agregar a ação
desencadeada pela própria direita, orientada a fazer crer que já não
existem ideologias nem tendências políticas e que há somente um sistema
econômico, social e cultural possível: o sistema capitalista.
Essa
linha estratégica da propaganda da direita, cultivada por seus meios de
comunicação, por seus centros de investigação e universidades, foi
assimilada pela Concertação, que a tornou sua. O mesmo ocorreu com o
movimento “rebelde” de Enríquez-Ominami que acreditou na ilusão de um
pacto social que superaria as contradições de classe e as diferenças
ideológicas, adormecidas mas mais profundas do que nunca. O movimento de
Enríquez-Ominami foi um pastiche em que ricos e pobres, exploradores e
explorados, conservadores, liberais e socialistas, co-habitavam em um
mesmo projeto.
A Esquerda também tem sua dose de responsabilidade
na indigência ideológica, política e cultural a que nos arrastaram a
ditadura, a Concertação e a direita. Não só se prolongou (e agravou) o
mosaico que fragmenta as forças populares. Seus setores mais sólidos não
foram capazes sequer de dedicar esforços sérios para a formação
política e para a propaganda anti-capitalista, prioritárias neste
período. Um fedor fascistóide brota assim da operação política e
mercantil que tratou de lavar o cérebro dos chilenos. Seu instrumento
principal é a UDI, cujos 40 deputados a converteram no principal partido
político do Chile, Sua bancada parlamentar reflete um audacioso
trabalho realizado na base social pela extrema direita, herdeira sem
melindres da ditadura militar. Exemplo disso é que Piñera recebeu 42,31%
dos votos nas dez cidades com maior desemprego do país e 51,02% nas dez
comunidades com maior taxa de pobreza, entre elas as mapuches (estudo
estatístico do jornal El Mercurio, de 15 de dezembro).
É certo
que, no plano da economia, salvo terminar de privatizar o que ainda não
privatizaram a ditadura e a Concertação, um governo de Piñera não se
diferenciaria muito de um de Frei. Mas haveria mudanças regressivas em
outros âmbitos. Por exemplo, em direitos humanos. Ele ditaria uma
anistia para militares já condenados ou interromperia os processos de
outros criminosos e torturadores. No terreno sindical, imporia a
flexibilização trabalhista e outras medidas para debilitar o movimento
dos trabalhadores. A repressão à luta social seria ainda mais dura. Por
trás de uma pretensa defesa da “segurança cidadã”, se levantaria um
Estado policial.
Piñera de declara admirador do governo da
Colômbia e de seus métodos, Visitou a Colômbia em julho de 2008 e
percorreu esse país no avião presidencial, acompanhando Álvaro Uribe e o
então ministro da Defesa, José Manuel Santos, hoje candidato
presidencial. Em outubro passado, Santos enviou ao Chile três membros de
seu comando de campanha, Juan Carlos Echeverry, Tomás González e
Santiago Rojas, para estudar a campanha e o estilo de Piñera. “Os
problemas no Chile e na Colômbia não são tão distintos. Ambos os países
estão preocupados com a segurança cidadã e o gasto social em saúde e
educação”, declarou um dos assessores de Santos.
O governo de
Uribe gerou o mais delicado problema que hoje enfrenta a América Latina
ao firmar com os EUA um acordo que submete a soberania colombiana para
permitir a instalação de sete bases militares norte-americanas. Se
Piñera for eleito presidente, alinhará o Chile com a Colômbia e outros
países da região que arriaram a bandeira da dignidade latino-americana.
Uma perigosa tendência que vem ganhando força a partir do golpe de
Estado em Honduras e que busca configurar um bloco contra Venezuela,
Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, os países da Aliança Bolivariana dos
Povos da América (ALBA).
A perigosa situação interna e regional
que se criaria com uma vitória da direita no Chile legitima a
necessidade de bloquear esta manobra da oligarquia. A realidade indica
que não há outro caminho que votar em Frei….E pôr-se a trabalhar por
uma alternativa de Esquerda que permita a libertação da arapuca do “mal
menor”.